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9 A crítica fenomenológica ao naturalismo e a questão ecológica Fabricio Pontin* Juliana Missaggia** ________________________________ A fenomenologia, a despeito da pluralidade de suas abordagens e apropriações, costuma ser identificada como uma filosofia de forte caráter subjetivista. Husserl, fundador do método fenomenológico e confesso cartesiano, manteve em toda a sua obra a afirmação da necessidade de partir da análise das estruturas da consciência e dos fenômenos tal como aparecem para o eu transcendental, uma vez que essa seria a base e o fundamento de todo o conhecimento possível. Heidegger e Merleau-Ponty, apesar das significativas alterações na concepção de fenomenologia, tampouco fogem de uma investigação que parte, essencialmente, do sujeito. Seja tal subjetividade o eu transcendental ou o ser-no-mundo, o fato é que a tradição fenomenológica, aparentemente com razão, poderia ser acusada de ser uma clássica representante do antropocentrismo. Diante disso, pode parecer inusitado que uma das ramificações recentes, nos estudos fenomenológicos, envolva, justamente, a tentativa de encontrar nessa abordagem os fundamentos filosóficos para um pensamento ecologista. Tal vertente de estudos, por vezes denominada eco-phenomenology ou environmental phenomenology entende que a fenomenologia pode fornecer conceitos significativos para o estabelecimento de uma filosofia que inclua, em seu escopo, a preocupação com o meio ambiente e a instauração de uma ética que ultrapasse pressupostos antropocêntricos. A dificuldade com a determinação de uma fenomenologia compatível com preocupações ecologistas fica ainda mais evidente quando pensamos em diversas passagens de obras importantes que deixam claro seu ponto de partida centrado na consciência, o que chega a aparentemente implicar, em alguns casos, a exclusão do mundo para além da noção de sujeito. Husserl afirma, por * Pós-doutorando (PNPD-Capes) no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, PUCRS. E-mail: fpontin@gmail.com ** Departamento de Filosofia, UFSM. E-mail: juliana.missaggia@ufsm.br Sociedade e ambiente: direito e estado de exceção 149 exemplo, que a realidade “tanto a realidade da coisa tomada isoladamente, como a realidade do mundo inteiro, é por essência [...] desprovida de independência” (HUSSERL, 2006, p. 117); o filósofo defende, também, que “jamais um objeto existente em si é tal que não diga em nada respeito à consciência e ao ‘eu’ da consciência” (HUSSERL, 2006, p. 112) e que “o mundo da ‘res’ transcendente é inteiramente dependente da consciência”. (HUSSERL, 2006, p. 115). A anterioridade da consciência, em relação ao mundo ou realidade seria tal, portanto, que a consciência poderia existir sem mundo, mas jamais o contrário; além disso, o mundo sem referência à consciência se converteria em um nada. (HUSSERL, 2006, p. 116). No que diz respeito à relação entre objeto enquanto coisa percebida (“mental”) e enquanto coisa da natureza, o fenomenólogo sustenta: “A árvore pura e simples, a coisa na natureza, é tudo menos esse percebido de árvore como tal” [...] (HUSSERL, 2006, p. 206). No caso de Heidegger e Merleau-Ponty, apesar das alterações significativas no conceito de mundo, o antropocentrismo também pode ser apontado. Bastaria para isso recordar, das análises heideggerianas, a obra Os conceitos fundamentais da metafísica, na qual o filósofo procura desenvolver o conceito de mundo, a partir do que ele chama de uma “consideração comparativa”, remetendo a análise da relação que diferentes entes teriam com o mundo ao qual todos pertencem. É nesse contexto que surgem, ainda que soando um tanto dogmáticas, as três teses: a pedra é sem-mundo, o animal é pobre de mundo e o homem é formador de mundo. (HEIDEGGER, 2003, p. 207). Para Heidegger, aos animais só está dado um mundo pobre e incompleto, em relação àquele acessível ao homem. O sujeito é, nessa perspectiva, o próprio criador do mundo, uma vez que é o criador de seu significado. De maneira semelhante, afirma Merleau-Ponty, no prefácio à Fenomenologia da percepção: “eu não sou um ‘ser vivo’ ou mesmo um ‘homem’ ou mesmo uma ‘consciência’, com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história – eu sou a fonte absoluta”. Isso ocorre, de acordo com a concepção do filósofo, na medida em que é a partir do sujeito que surge qualquer sentido concebível de ser, de modo que é possível concluir que “minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta”. (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 3). 150 Itamar Soares Veiga – Cleide Calgaro – Norman Roland Madarasz (Org.) Apesar de todas essas evidentes dificuldades, as quais à primeira vista parecem inerentes ao próprio método, o ponto de partida da eco-fenomenologia envolve uma apropriação da tradição fenomenológica que, de acordo com Brown e Toadvine, pode ser resumida em dois pontos centrais: primeiro, que os métodos e insights fenomenológicos podem contribuir para o desenvolvimento do pensamento ecologista; e, em segundo lugar, que a própria fenomenologia, a partir de um desdobramento natural de seus fundamentos, leva a uma configuração na forma de filosofia ecologista, a começar por suas críticas ao naturalismo e por seu conceito de mundo, central para os fenomenólogos de modo geral. (BROWN; TOADVINE, 2003, p. xii-xiii). A questão da rejeição ao naturalismo está, por exemplo, presente nos principais argumentos de Erazim Kohák, Lester Embree e Charles S. Brown, que visam a relacionar fenomenologia e filosofia ecologista, sobretudo a partir da apropriação de argumentos desenvolvidos por Husserl, na chamada “fase tardia” de seu pensamento, que fornece em maiores detalhes conceitos centrais para a ecofenomenologia, como a noção de mundo da vida. Como aponta Brown, há elementos importantes na crítica husserliana ao naturalismo: sua indicação dos limites e das graves consequências de conceber a natureza como mero conjunto de propriedades causais neutras contribuiu para o questionamento de pressupostos filosóficos que, levados às últimas consequências, conduziriam para a exclusão de qualquer possibilidade de pensamento moral nesse campo, pois “ao reduzir toda a realidade à extensão e à causalidade, o naturalismo separa o bem do real, em última instância tornando a filosofia moral impossível”. (BROWN, 2003, p. 3). Isso fica mais claro se levarmos em conta o contexto no qual surgem tais análises na obra de Husserl, principalmente suas considerações sobre o afastamento e o ocultamento, pela tradição filosófica, da relação entre ciência e mundo da vida. O primeiro aspecto relevante é a relação direta com aquilo que Husserl chama de “crise das ciências”, sobretudo a partir de sua obra Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie: Eine Einleitung in die phänomenologische Philosophie (Krisis, de 1936). Considerando que Krisis surge a partir de conferências realizadas pelo filósofo em Viena e Praga, no ano de 1935, pode parecer surpreendente que, nesse contexto, algo como uma efetiva crise nas ciências fosse identificado. Sociedade e ambiente: direito e estado de exceção 151 De fato, Husserl reconhece essa dificuldade, e procura esclarecer o que ele reconhece como uma crise: não é o caso de negar que a ciência em geral possua rigor metodológico, ou alegar que há qualquer razão concreta para duvidar sistematicamente de seus resultados. O que ocorre é que a ciência, em razão da noção mesma de mundo e cientificidade que guia suas investigações, afastou-se por completo de todas as questões existenciais caras ao ser humano, e a própria concepção de humanidade se reduz ao escopo de corpos físicos dentre outros corpos físicos, do mesmo modo que natureza é tomada como mero conjunto de “fatos” passíveis de verificação e experimentação, de acordo com os critérios do método vigente para cada campo científico. Nesse modo de proceder, é natural que ocorra um distanciamento e uma perda do sentido da ciência: Ela [a ciência] exclui de um modo inicial justamente as questões que, para os seres humanos nos nossos desafortunados tempos, abandonados às mais fatídicas revoluções, são as questões prementes: as questões acerca do sentido ou ausência de sentido de toda esta existência humana. [...] Que tem a dizer a ciência sobre a razão e a não razão, que tem ela a dizer sobre nós, seres humanos enquanto sujeitos desta liberdade? A mera ciência dos corpos obviamente nada, pois abstrai de tudo o que é subjetivo. [...] A verdade científica, objetiva, é exclusivamente a verificação daquilo que o mundo, de fato, é, tanto o mundo físico como o espiritual. (HUSSERL, 2012, p. 3). Husserl entende que a origem da concepção de ciência, que determinou essa cisão com diversos aspectos fundamentais da vivência humana, encontra-se na “decapitação” que o positivismo científico executou na concepção filosófica desenvolvida a partir do Renascimento. Embora podendo ser entendida como um “resíduo” do ideal de ciência omni-abrangente, que guiava o Renascimento e a Modernidade, o positivismo científico realizou um corte metodológico, excluindo todos os problemas da razão – metafísicos, existenciais, éticos e teológicos – que faziam parte do ideal que inaugurou o pensamento da filosofia moderna. (HUSSERL, 2012, p. 4-6). Porém, a despeito da exclusão dos problemas da razão, a base da ciência contemporânea encontra suas raízes na ideia diretriz do método da filosofia e ciência da Modernidade, cuja justificativa de seus fundamentos reside na transformação da matemática e na consequente matematização da natureza, efetuada de modo exemplar por Galileu. As tarefas impostas à matemática, 152 Itamar Soares Veiga – Cleide Calgaro – Norman Roland Madarasz (Org.) nesse contexto, constituem uma novidade estranha ao pensamento da Antiguidade: embora a matemática e a lógica tivessem um lugar de destaque, por exemplo, no pensamento grego antigo, foi somente a partir da filosofia moderna que a realidade passa a ser vista como um “mundo de idealidades”, no qual um sistema metodológico particular, fundado em uma concepção específica de matemática, é dado como condição para qualquer saber de caráter científico.1 (HUSSERL, 2012, p. 15-16). É nesse cenário que se inicia o processo que viria a resultar na separação entre ciência e mundo da vida, o que ocorre, em primeiro lugar, pela alteração do conceito de mundo e daquilo que é tomado como fonte confiável de experimentação científica. Nas palavras de Husserl, ocorre a substituição do “único mundo alguma vez experienciado e experienciável – o nosso mundo da vida cotidiano – pelo mundo matematicamente substruído das idealidades”, substituição essa que “foi rapidamente transmitida aos [...] físicos de todos os séculos subsequentes”. (HUSSERL, 2012, p. 38). De fato, com Galileu inaugura-se a passagem da natureza “pré-cientificamente intuível” para a “natureza idealizada”, mas essa tendência segue ganhando espaço e novas consequências para o saber científico. Desde suas primeiras elaborações, todas as fórmulas e símbolos das ciências passam, cada vez mais, a criar um distanciamento entre a experiência de realidade tal como se dá no mundo da vida cotidiano e no mundo científico matematizado. Isso não significa, reforça Husserl, que a ciência em nada tenha progredido dos tempos de Galileu até a contemporaneidade, ou que todos os seus resultados não passem de ilusões: o filósofo deixa claro que não apenas reconhece como efetivos os avanços científicos, como também entende suas 1 A distinção que Husserl traça entre a concepção idealizada de Platão e Galileu (este último enquanto figura central da matematização da natureza) é explicitada do seguinte modo: “Para o platonismo, o real possuía uma methexis mais ou menos perfeita no ideal. Isto oferecia à geometria antiga possibilidades de uma aplicação primitiva à realidade. Ora, na matematização galilaica da natureza, é esta mesma natureza que é idealizada sob a orientação da nova matemática; ela torna-se – em termos modernos – também uma multiplicidade matemática”. Husserl também esclarece que, embora entenda estar na sua origem, não pretende atribuir a Galileu a mesma concepção científica que critica na contemporaneidade: “Observamos que Galileu, o filósofo natural e ‘pioneiro’ da física, não foi ainda um físico no sentido atual; seu pensar não se move ainda, como o do nosso matemático e físico matemático, numa simbologia estranha à intuição, e não lhe podemos imputar aquilo que para nós, em resultado de Galileu e do desenvolvimento histórico que se lhe seguiu, se tornou ‘coisas óbvias’” (HUSSERL, 2012, 16-7). Sociedade e ambiente: direito e estado de exceção 153 contribuições como fontes genuínas de conhecimento. O problema, no entanto, é que, “apesar de toda a novidade permanece [...] o que é essencial em princípio: a natureza em si matemática, dada em fórmulas, interpretada unicamente a partir das fórmulas”. (HUSSERL, 2012, p. 42). Essas análises são interessantes para o desenvolvimento da ecofenomenologia, na medida em que a crítica que Husserl elabora transcende o contexto científico particular de seu tempo. A atualidade da fase tardia do pensamento husserliano reside, em parte, justamente no fato de o filósofo ter reconhecido um padrão que não diz respeito apenas a um modo de fazer ciência na Europa dos anos 30, mas antes a uma concepção de cientificidade que permeia a ideia de conhecimento ainda hoje e cujas origens estão nos pressupostos da filosofia ocidental, e seu ideal de saber científico, o qual, de acordo com os adeptos da fenomenologia ecologista, necessariamente implica tal concepção limitada e moralmente prejudicial de natureza. Assim, a partir desse pano de fundo conceitual, a ecofenomenologia procura ultrapassar os elementos críticos e em certo sentido desconstrutivos das considerações de Husserl, em direção a desenvolvimentos conceituais voltados para a proposta de criação de uma concepção de natureza e meio ambiente, a partir das investigações fenomenológicas. Um dos aspectos mais imediatos envolve justamente analisar as consequências da concepção de natureza “idealizada” e matematizada – enquanto mero objeto de apropriação de um fazer científico necessariamente neutro – para a relação com o meio ambiente: ao conceber a natureza de tal modo, acaba-se por criar uma cisão radical entre ser humano, como sujeito do conhecimento, e meio ambiente como objeto fixo e exterior. Tal objetificação da natureza envolve, sobretudo, sua caracterização como elemento radicalmente diferente da humanidade, de modo que é concebida sobretudo enquanto coisa alheia a ser conhecida e, nesse processo de objetificação, apropriada. É nesse ponto que, segundo Kohák, surge a necessidade de reforçar aquilo que o autor identifica como uma virada importante no pensamento husserliano tardio, a qual se estenderia a outros desdobramentos da fenomenologia, como as obras de Heidegger e Merleau-Ponty: a passagem de uma concepção de mundo como mero conjunto de objetos espaçotemporais para a noção de mundo como experiência. (KOHÁK, 2003, p. 24). Associada a tal ideia de mundo, 154 Itamar Soares Veiga – Cleide Calgaro – Norman Roland Madarasz (Org.) como algo que surge a partir do experienciar de um sujeito e não como objeto fixo está a noção de meio ambiente como simultaneamente constituído e constitutivo da subjetividade, de modo que um dualismo simplista, seja ontológico, seja epistemológico, não teria lugar. Junto a isso, também há o entendimento do que é, da maneira como opera, a racionalidade precisa ser reformulada. Já não cabe uma concepção meramente operativa e supostamente neutra de razão. Como argumenta Kohák, “o problema com nossa concepção usual de racionalidade [...] é que ela não inclui a dimensão do valor e do sentido. Necessariamente desse modo: não há sentidos e valores no mundo reconstruído na reflexão teórica como ‘objetivo’”. (KOHÁK, 2003, p. 25). Ora, se o mundo é um objeto pronto a ser compreendido, a partir de determinadas características já previamente estabelecidas, a atividade filosófica e científica se resume a apreender tais elementos. Com a mudança para a ideia de mundo, como fruto da experiência vivida de um sujeito, a noção de racionalidade não pode se limitar a uma atividade de apreensão e cálculo, mas sim precisa se complexificar para abarcar também a de doadora de sentido e de julgadora de valores, em relação aos fenômenos da experiência. Desse modo, junto à concepção filosófica de mundo, não somente o conceito de meio ambiente precisa ser transformado, mas também as bases da noção de sujeito, a começar por aquilo que se entende por racionalidade, inclusive no que diz respeito aos seus usos e às possibilidades. É seguindo na mesma linha de argumentação que Embree (2003) indica a importância da crítica ao naturalismo, sobretudo a partir do estabelecimento da noção de mundo da vida. Tal conceito teria um papel metodológico fundamental para um pensamento ecologista de base fenomenológica, pois permite substituir a ideia de natureza objetificada pela concepção de natureza, como parte do mundo da vida. Através dos fundamentos do mundo da vida, meio ambiente já não pode ser concebido como mero objeto de apreensão teórica, mas passa a fazer parte da complexa rede de vivências e experiências. Haveria um elemento cultural e intersubjetivo inerente nessa visão de natureza, assim como a indicação da apropriação científico-teórica, como derivada e secundária em relação ao contato imediato dado na vivência. (EMBREE, 2003, p. 38-39). São esses elementos, também, que Hébert indica como os mais promissores em uma abordagem ecologista, a partir dos conceitos Sociedade e ambiente: direito e estado de exceção 155 fenomenológicos: através da nossa própria consciência “entendemos os diversos modos pelos quais estamos intimamente conectados com tudo que experienciamos. Ao expandir nossa consciência e conhecê-la na natureza, começamos a viver em uma consciência ecologista do nosso lugar no mundo da vida”, (HÉBERT, 2014, p. 30-31). O autor argumenta que o tipo de concepção de consciência e de autoconsciência, presente na tradição fenomenológica, aponta para a necessidade de reconhecimento não somente de outras consciências humanas e amplia e questiona o conceito restrito de racionalidade, assim como o valor excessivo a ele atribuído. A descoberta fenomenológica da necessária intersubjetividade, na constituição da consciência, seria o elemento-chave para tal ampliação teórica, que culmina na transformação do conceito de natureza. Embree reconhece, no entanto, a dificuldade com a noção de mundo da vida, no momento de estabelecer os limites do que se entende por “teórico” e “cientificista”, nesse contexto. Embora a definição fenomenológica mais tradicional de mundo da vida inclua a ideia de uma vivência concreta précientífica – e seja, precisamente, esse o elemento de maior interesse para a ecofenomenologia –, parece inegável reconhecer na base mesma da metodologia, ao menos como empregada por Husserl, o subjetivismo mencionado anteriormente. De fato, ainda que se aceite que a inerente intersubjetividade da experiência vivida permita uma apreensão menos engessada de meio ambiente, a qual necessariamente envolve a experiência de contato e de autoinclusão, ainda assim a valoração se dá a partir das vivências internas da subjetividade. (EMBREE, 2003, p. 39-41). O ponto central da análise seria não a negação do elemento teórico e subjetivo da construção metodológica por trás da ecofenomenologia, mas perceber a diferença central no tipo de construção teórica nos dois casos (mundo da vida e naturalismo), “ainda que a ênfase em seu trabalho seja a natureza mundo-vivenciada, a qual poderia ser depois especificada como meio ambiente mundo-vivenciado, o mundo da vida é concretamente cultural para Husserl”. (EMBREE, 2003, p. 39-40). Tal elemento cultural implica a construção intersubjetiva de significação e valoração, assim como uma vivência necessariamente partilhada. Por outro lado, “a adoção da atitude naturalista requer abstração de valores e usos de objetos culturais e demanda objetos 156 Itamar Soares Veiga – Cleide Calgaro – Norman Roland Madarasz (Org.) naturalistas” (EMBREE, 2003, p. 40), o que indica, portanto, uma concepção muito mais restrita de meio ambiente. Assim, apesar das aparentes dificuldades metodológicas, a aposta da fenomenologia ecologista envolve uma leitura e interpretação específicas da fenomenologia, principalmente a partir de seus desdobramentos no pensamento husserliano tardio e na ênfase nos elementos intersubjetivos da construção de sentido das vivências. Os defensores da possibilidade de fundamentação do pensamento ecologista, a partir da tradição fenomenológica, sustentam, portanto, que não se trata de uma negação dos aspectos subjetivos e teóricos também presentes na sustentação de conceitos como mundo da vida e meio ambiente partilhado, mas sim na evidência de um fazer teórico que não se reduz à objetificação da natureza e no isolamento da subjetividade. Ao falarmos dos desdobramentos tardios do trabalho de Husserl, é importante destacar a forma como a abordagem do problema da intersubjetividade muda na filosofia husserliana, entre o chamado período “genético” e “generativo” de sua filosofia. Essa questão pode parecer implicar, apenas, em consequências para abordagens epistemológicas hard, particularmente para a forma como Husserl vai entender o problema da intencionalidade e do conhecimento. No entanto, tal mudança de abordagem tem consequências diretas como uma abordagem fenomenológica integra o ambiente, a natureza e o sujeito dentro da abordagem transcendental – particularmente dentro do problema da forma do dar-se (Gegebenheit) do objeto. A questão da forma de “aparição” do objeto perturba Husserl desde as Investigações lógicas, e pauta a forma como a intencionalidade é abordada pelo autor. Parece claro que o ambiente, nesse primeiro momento da filosofia de Husserl, é compreendido como um dado para a consciência, a ser apreendido a partir da síntese intencional ativa. Isso coloca o ambiente como um dado para a experiência do ego – e situa o sujeito firmemente na posição de dar sentido para o quê, propriamente, constitui o ambiente, e, ato contínuo, dá sentido para o ambiente. É claro, Husserl tenta superar um modelo mecanicista de abordagem intencional, que colocava a relação entre objeto-sujeito como direta, através da redução fenomenológica do objeto. O objeto, assim, daria para o sujeito um limite real Sociedade e ambiente: direito e estado de exceção 157 para o ato constitutivo, mas o sujeito permanece na posição de dar-sentido, ativamente, para aquilo que é dado. Husserl não se satisfaz com esse modelo estático, realista e estrutural de fenomenologia; no entanto, e já nas Ideas trata de modificar a forma do dar-se de objetos, falando, inclusive, de uma espécie de primordialidade do mundo – expressa através de uma posição transcendental. Essa posição transcendental, inaugurada nas Ideas, nos oferece um modelo de fenomenologia genética, que tenta, como colocamos acima, estabelecer uma distinção entre uma posição naturalista ingênua, que identifica uma dimensão da natureza com a totalidade das coisas, e reduz a experiência sensível ao real, e uma postura transcendental – que Husserl irá chamar de lógica transcendental, que situa o sujeito em relação direta e intensa com objetos reais. Aqui, Husserl faz uma distinção entre uma lógica formal, naturalista, preocupada em estabelecer e verificar relações causais observáveis no dia a dia, e uma lógica transcendental, que pretende superar tanto o mecanicismo naturalista inglês, quanto o realismo lógico da fenomenologia estática. (MORAN, 2008). A ideia de sujeito transcendental desenvolvida nesse período da filosofia de Husserl é, portanto, uma ferramenta para tirar o indivíduo de sua solidão constitutiva, que Husserl chamou de “vida solitária do Ego”, nas Investigações lógicas, e integrar o Mundo ao ato intencional e constitutivo. Aqui, Husserl pavimenta o caminho para os estágios constitutivos (STEINBOCK, 1995) do mundo da vida, que encontramos nos dois anexos ao texto da Crise. O conceito de Mundo da Vida poderia, então, ser uma espécie de abandono do subjetivismo transcendental que marca as Ideias e toda a fenomenologia genética de Husserl? No texto da Crise, parece, ainda não encontramos esse abandono. A redução fenomenológica que nos leva até a estrutura do mundo da vida, como condição de possibilidade para a compreensão da natureza, é, na Crise, ainda operada por um sujeito – ela ainda tem como protagonista um indivíduo que dá forma e controla o sentido daquilo que podemos chamar de natural. Nesse sentido, a Crise não identifica o antropocentrismo como parte do problema da filosofia transcendental e da ideia de Europa, mas como parte da solução para o problema – desde que esse antropocentrismo seja compreendido dentro da estrutura transcendental do 158 Itamar Soares Veiga – Cleide Calgaro – Norman Roland Madarasz (Org.) mundo da vida – o que é dizer, o Sujeito não é um sujeito, mas é uma ideia de sujeito afirmada a partir de uma posição fundacional. Pois bem, como podemos superar essa tensão dentro de uma perspectiva fenomenológica? Parece que a psicologia transcendental que caracteriza a fase genética da filosofia husserliana não supera o reflexo moderno de identificar o sujeito como “mestre” da ordem natural. O sujeito é colocado em uma posição transcendental, e deslocado de uma ordem natural “ingênua”, e, com isso, está em uma posição de “desnaturalizar” sua consciência (MORAN, 2008) e, por isso mesmo, compreender a natureza como parte da estrutura intencional do Mundo da Vida. O que queremos ressaltar é que uma postura ecológica, a partir da fenomenologia, precisaria questionar essa centralidade do sujeito para a validade do mundo. No entanto, ao menos dentro da fase genética de Husserl, esse salto não é dado – deixando Husserl na posição paradoxal de, ao tentar superar o naturalismo “ingênuo” dos mecanicistas, acabar com um antropocentrismo transcendental, baseado em uma espécie de versão do psicologismo inglês com esteroides. No entanto, os textos tardios de Husserl mudam o foco da filosofia transcendental husserliana. Enquanto o texto da Crise se debruça sob a insuficiência do modelo representacional da natureza, como aquilo que é simplesmente dado para a experiência sensível, os textos tardios, que são colocados dentro da rubrica de uma fenomenologia generativa (STEINBOCK, 1995; WELTON, 2002), desenvolvem dimensões distintas para o problema do dar-se dos objetos nas diferentes dimensões do Mundo da Vida. Esse desenvolvimento é feito a partir de três mudanças centrais na abordagem de Husserl: a) a síntese constitutiva, a partir da postura intencional, não é mais apenas ativa, mas descrita em termos de uma síntese passiva, condição para a compreensão da estrutura primordial do mundo da vida; b) o polo constitutivo do mundo da vida não é mais compreendido desde uma posição egoica. Husserl deixa de falar em sujeito transcendental para falar em intersubjetividade transcendental; c) a forma do dar-se do mundo da vida não é monádica. Aquilo que é dado pode ser dado a partir de uma condição vertical ou de uma condição horizontal. Sociedade e ambiente: direito e estado de exceção 159 Quando Husserl desenvolve a questão da Síntese Passiva, nos seus textos tardios sobre lógica transcendental, ele quer fazer uma distinção radical entre a posição que tomamos desde uma atitude natural, quando afirmamos que a forma como o objeto aparece é o objeto que percebemos de forma consciente, diretamente, e o contexto onde temos a sensação desse objeto, o que é dizer, a situação onde um objeto está colocado e como essa situação afeta a nossa possibilidade de ter uma sensação desse objeto, antes mesmo de sermos conscientes da presença do objeto. Husserl quer ressaltar que somos capazes de integrar elementos que não estão presentes ativamente para o ego transcendental, no momento de síntese como partes do processo de integração constitutiva do objeto, como objeto. Esse modo de contextualização da forma do dar-se do objeto enquanto necessário para a descrição fenomenológica adequada é o que Husserl denomina de síntese passiva. Mas, nota bene, a natureza desse objeto nos é dada, imediatamente, por uma perspectiva. Merleau-Ponty diria que o objeto é dado na sua totalidade, mas é dado na sua totalidade a partir de uma perspectiva. Husserl, décadas antes de Merleau-Ponty, aponta para uma unidade sintética do objeto, que é apreendida pelo ego transcendental apenas desde uma perspectiva, mas que afeta o ego transcendental desde todas as suas perspectivas. Nesse processo, é verdade, o sujeito está em posição de dar sentido para uma perspectiva do objeto, mas também é afetado por esse objeto no seu ato de dar sentido. Essa reciprocidade constitutiva pode ser considerada uma espécie de co-constituição, onde o processo constitutivo coloca, no polo ativo e passivo, todas as partes envolvidas no ato – em um momento partes são objeto e sujeito do processo constitutivo, a relação entre as partes pressupõe a interação no processo constitutivo – não existem polos estáticos que controlam o processo de dar sentido. Aqui, o ambiente é o campo onde o sentido está sendo dado, continuamente – tomando uma posição vertical em relação ao processo de tomada de conhecimento de objetos, na medida em que ele é a própria condição de possibilidade para o conhecimento. Vejam, Husserl não nega que existe uma materialidade intencional na relação material, uma relação horizontal, entre alguém que deseja dar sentido para um objeto e o objeto em si, mas essa relação 160 Itamar Soares Veiga – Cleide Calgaro – Norman Roland Madarasz (Org.) de materialidade pressupõe um ambiente, ela pressupõe uma posição de objetos dentro de um mundo da vida. É importante ressaltar que Husserl não está sugerindo uma postura de descontrole constitutivo total, mas sugerindo que, em última medida, o ego transcendental não tem, através da força representacional-intencional de sua cognição, o privilégio da última palavra. Na realidade, as formas de expressão são sutilmente limitadas a partir de um mundo da vida dividido, e que é dividido de formas diferentes em diferentes contextos de apropriação e apresentação. A ideia de intersubjetividade transcendental entra aqui para destacar o caráter dividido do mundo da vida. Aquele ego transcendental isolado, das Investigações lógicas, ou colocado de forma central, no psicologismo das ideias, agora é informado por uma relação intensa com outros indivíduos. A minha atividade egoica é limitada e constituída pela atividade egoica e constitutiva de outros, a materialidade da minha representação de um objeto como “x” já é informada por minhas relações prévias com outros indivíduos, pela minha condição erótica e histórica (o que é dizer, pela presença do corpo e o impacto do tempo na representação do objeto), e, sobretudo, sobre como o ambiente marca essa minha relação complexa com outros, e com minha própria história constitutiva. Mais uma vez, a horizontalidade da relação material é cruzada por uma relação vertical que é profundamente ambiental. Somos nós mesmos da mesma forma quando nos encontramos em ambientes fechados e poluídos, e quando nos encontramos em ambientes abertos e limpos? Nossa cognição ocorre da mesma forma, com o mesmo potencial, em situações com ou sem água potável? Qual é a nossa representação da moral quando estamos mal-alimentados? A materialidade do mundo da vida permanece em todas essas situações, mas com uma qualidade manifestamente distinta. A urgência da questão ecológica para a qualidade de nossas representações morais e epistêmicas é inescapável no último Husserl, justamente porque é a ecologia do mundo da vida que caracteriza a apresentação de todas as partes que, conjuntamente, participam do processo de atualização constante da realidade. Sociedade e ambiente: direito e estado de exceção 161 Referências BROWN, Charles S.; TOADVINE, Ted. Eco-phenomenology: an introduction. Eco Phenomenology: Back to the Earth Itself, SUNY Press, 2003. EMBREE, Lester. The possibility of a constitutive phenomenology of the environment. Eco Phenomenology: Back to the Earth Itself, SUNY Press, 2003. HÉBERT, Ian-Michael. 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