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DIÁLOGO http://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Dialogo Canoas, n. 39, 2018 Apresentação do Dossiê Setenta Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos Tatiana Vargas Maia1 Fabrício Pontin2 Os setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos ocorrem em um momento pouco propício para comemorações. O contexto da declaração, em 1948, era o do reconhecimento da falência do modelo do direito de Guerra de Haia para os conflitos contemporâneos e suas repercussões humanitárias, e da necessidade da criação de um sistema que fosse capaz de evitar a repetição dos horrores da guerra de trincheira, na primeira guerra mundial, e dos campos de concentração e de morte na segunda guerra mundial. Os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, elaborados sob a tutela de Eleanor Roosevelt, que buscava, na criação de um sistema amplo de proteção abstratas, dar substrato para o surgimento de um sistema efetivo de garantias concretas humanitárias, que talvez atinja o ápice nas Convenções de Genebra, e seus anexos. O sistema de Genebra, que cria o esqueleto do chamado “Direito Internacional Humanitário” busca, sobretudo, dar meios de prevenção de crises humanitárias, e, em caso de emergência, formas de esvaziar crises humanitárias em decorrência de desastres ambientais e políticos-econômicos. O sistema de direitos humanos iniciado em 1948, com a DUDH, encontra nas convenções de Genebra uma tentativa de efetivação mínima, que é endossada pela grande maioria da comunidade internacional, e reconhecida como o necessário para a dignidade humana básica. Esse reconhecimento fica ainda mais claro quando vemos o caráter transconstitucional do artigo terceiro da Convenção de Genebra, que atribui as proteções mais básicas para a pessoa humana de forma independente de raça, gênero, nacionalidade ou qualquer outro marcador social. O instrumento não apenas está presente em todas as normativas das Nações Unidas sobre direitos humanos, como também é reconhecido em legislações domésticas no mundo todo. Esse reconhecimento normativo permite um espelhamento institucional e constitucional, onde países reconhecem mutuamente a validade e normatividade do sistema de direitos humanos. Tal reconhecimento deveria, do ponto de vista estritamente formal, ser suficiente para garantir a integridade de pessoas e grupos sociais vulneráveis, vitimados por crises eventuais. No entanto, desde a intensificação da crise ambiental-política na Líbia, que comunica para uma crise sem precedentes nos últimos 50 anos em todo o norte da África e oriente médio, o sistema de direitos humanos fundado pela DUDH, efetivado pela criação dos instrumentos de Direito Internacional 1 Doutora em Ciência Política. Professora do Programa de Pós-Graduação em Memória Social de Bens Culturais da Universidade La Salle. E-mail para contato: tatiana.maia@unilasalle.edu.br. Doutor em Filosofia. Professor dos bacharelados em Direito e Relações Internacionais da Universidade La Salle. E-mail para contato: fabricio.pontin@unilasalle.edu.br. 2 94 Tatiana Vargas Maia, Fabrício Pontin Humanitário, e finalmente reconhecido através da incorporação de princípios de direitos humanos em instrumentos de direito interno no mundo inteiro, se mostrou insuficiente. Diversos países e autoridades internacionais, diante da crise humanitária, escolheram privilegiar uma interpretação restritiva e por vezes xenofóbica dos seus respectivos sistemas de direito, por vezes encorajando movimentos neo-autoritários, neo-fascistas e neo-integralistas que rejeitam a linguagem dos direitos humanos como um todo. Esse é certamente um cenário melancólico no qual organizar um volume sobre a Declaração Universal de Direitos Humanos. No entanto, procuramos montar um dossiê que representasse os diferentes desafios, e diferentes perspectivas, para o sistema de direitos humanos, incluindo artigos escritos por pesquisadores consagrados em nível internacional, e também jovens e promissores pesquisadores que estão se dedicando ao tema. Nosso objetivo, com isso, é dar um panorama de possíveis caminhos que ainda podemos trilhar para a efetivação, proteção e interpretação das ideias construídas no contexto do pós-guerra. Abrimos o nosso dossiê com o artigo de Brunilda Pali e Katrin Kremmel. A Professora Pali é pesquisadora do Instituto de Criminologia de Leuven, e é uma das principais pesquisadoras na área de direitos humanos e práticas restaurativas no norte da Europa, e Katrin Kremmel está finalizando seu doutorado em Antropologia Social na Universidade de Viena. O artigo de Pali e Kremmel é uma tentativa de reconciliação da leitura e crítica Arendtiana do sistema de Direitos Humanos, especialmente do conceito de ação política desenvolvida pela autora, que requer uma constituição do sujeito político como não vulnerável. Pali e Kremmel ressaltam a importância da análise feita por Arendt, ao mesmo tempo que, analisando protestos de refugiados na Áustria, indicam a importância de levar a sério a atual configuração da vulnerabilidade social e da possibilidade de retomar a ideia dos “direitos a ter direitos”, desenvolvida por Arendt, no contexto de identidades pós-modernas, que buscam o reconhecimento de suas demandas de formas que Arendt não foi capaz de prever. É o primeiro artigo em língua portuguesa publicado pela professora Pali, e acreditamos que será uma importante reflexão para todos interessados em estudos sobre questões de ativismo e refúgio, e mesmo para a discussão sobre Hannah Arendt no Brasil. Fernanda Brandão Lapa, Luana de Carvalho Silva Gusso, e Sirlei de Souza, professoras da Universidade da Região de Joinville (Univille) que trabalham cotidianamente com a questão dos Direitos Humanos no ambiente universitário trazem, em seu texto, uma reflexão absolutamente urgente acerca do direito à educação e da Educação em Direitos Humanos. O artigo “Direito Humano à Educação (Art. 26 Na Dudh): os Desafios para Implementar uma Educação em Direitos Humanos no Brasil” apresenta e discute a questão do direito à educação no contexto dos setenta anos da Declaração Universal de Direitos Humanos. Partindo de uma perspectiva de análise jurídica, as autoras refletem sobre a implementação de propostas de educação em Direitos Humanos no Brasil, com um enfoque nos principais desafios enfrentados para a concretização de projetos com perspectiva multicultural, apoiados nos eixos da equidade, da diversidade e da cidadania. Lapa, Gusso e Souza apontam três eixos principais nesse desafio: 1) o avanço de governos conservadores com matizes autoritárias; 2) a questão da destinação orçamentária à educação, e 3) a precarização das carreiras de professores. Para as autoras, o fortalecimento de grupos conservadores na política nacional têm exigido uma maior atenção e cuidado por parte das organizações de defesa dos direitos humanos e dos profissionais ligados à educação, bem como o desenvolvimento de estratégias inovadoras para garantir a efetivação desses direitos. O artigo de Marco Afonso Johner, acadêmico do bacharelado em Direito do Centro Universitário de Itapiranga (SC), “A Presunção de Inocência no Contexto da Declaração Universal de Direitos Humanos e a sua Relativização pelo Supremo Tribunal Federal” por sua vez, aprofunda a abordagem jurídica da Declaração Universal de Direitos Humanos, analisando a questão compatibilidade entre a execução provisória da pena e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao analisar os argumentos do Supremo DiÁLOGO, Canoas, n. 39, p. 93-96, dez. 2018 | ISSN 2238-9024 Setenta Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos Tribunal Federal no julgamento do habeas corpus nº 126.292, o autor aponta para uma inconsistência entre o entendimento desta corte com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, sobretudo no que diz respeito à permissão garantida à execução provisória da pena, o que vai de encontro com a presunção de inocência e, por antecipar o juízo da culpa antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Por fim, o artigo que encerra o nosso dossiê é intitulado “Entre o Festejo e a Introspecção: Os Direitos Humanos à Luz dos 30 anos da Constituição Federal de 1988”, de autoria de Aimée Schneider, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF), e pesquisadora do Laboratório Cidade e Poder. Pesquisadora Júnior do INCT–Proprietas. Em seu artigo, Schneider reflete a respeito dos trinta anos da Constituição Federal Brasileira de 1988, a “Constituição Cidadã”, cotejando esse aniversário com a coincidência da data dos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ultrapassando amplamente a coincidência das datas, a autora situa sua análise no contexto dos Direitos Humanos no cenário brasileiro contemporâneo, um cenário onde questões relativas à segurança pública e uma possível relativização do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana ganham relevância ímpar. Sublinhando o duplo aniversário de ambos documentos, Schneider sublinha a importância de resgatarmos a fundamentação de nossa Carta Magna e o comprometimento expresso na nossa Constituição com a Declaração Universal dos Direitos Humanos como plataforma emancipatória de uma sociedade que ainda se encontra em desenvolvimento. Enquanto terminamos esse dossiê lemos notícias sobre uma multidão de imigrantes hondurenhos tendo seus pedidos de asilo político negados, na fronteira entre os Estados Unidos e o México, ao mesmo tempo que uma menina de sete anos não resistia às condições dos campos de refugiados nos Estados Unidos, morrendo enquanto era transportada para ter tratamento adequado. Esses casos não são exemplos isolados. Se os últimos dois anos indicam uma tendência, ela não é pela ampliação dos direitos dos exilados, ou pela expansão do regime de inclusão de imigrantes de toda e qualquer natureza. Na realidade, a tendência dos últimos anos não é sequer pela manutenção do regime limitado de inclusão de imigrantes e concessão de direitos para exilados, ou pela consolidação das garantias humanitárias, até para cidadãos. Pelo contrário, o que vemos é uma clara retração no regime de concessão, seja através da restrição radical de critérios de inclusão de novos exilados e refugiados, seja através da mudança de tratamento normativo dos estrangeiros, seja pela relativização das normas de relativização de pena ou reconhecimento de direitos humanos - para pior. Se a inclusão potencial do exilado, e reconhecimento de um sistema de direitos fundamentais amplo e irrestrito, é uma via de acesso para a maior efetividade de Estados Democráticos e consolidação dos processos deliberativos e republicanos que marcam o Estado contemporâneo, o que esses movimentos indicam é um abandono dessa via de acesso. Ainda que tenhamos uma ampla e rica literatura investigando as possibilidades de efetivação de dinâmicas cosmopolitas, e sobretudo de cidadanias globais, esses acontecimentos políticos recentes nos apontam para uma realidade onde aqueles deslocados, aquelas milhares de pessoas que vemos surgir, deslocadas por tragédias ambientais, sociais e políticas, e que estariam supostamente incluídas em um sistema e agora aparecem sem um lugar, sem um reconhecimento normativo, despidas, de fato, de sua cidadania e humanidade fundamental, reaparecem nas margens do Mediterrâneo, nos campos de deslocados da Turquia e da Jordânia, nas praças em Boa Vista e nas fazendas do Novo México. Essas pessoas existem, ao mesmo tempo, dentro e fora de um espaço geográfico e dentro e fora de um espaço de direitos. O consenso do pragmatismo político contemporâneo não é pela inclusão ou expansão de direitos para o refugiados e exilados, mas pela recusa e precarização da permanência dessas pessoas. Esse volume, no espírito do nosso periódico, busca dar um panorama das discussões possíveis que orbitam ao redor do tema dos Direitos Humanos, especialmente no contexto da Declaração Universal de DiÁLOGO, Canoas, n. 39, p. 93-96, dez. 2018 | ISSN 2238-9024 95 Tatiana Vargas Maia, Fabrício Pontin 96 Direitos Humanos, contribuindo para pesquisadores e o público interessado de forma ampla e inclusiva, contemplando desde alunos iniciando a pesquisa, até pesquisadores consolidados na área de Direitos Humanos e Teoria Política, procurando novas vias de acesso teórico para o tema. Canoas, Dezembro de 2018 Tatiana Vargas Maia Fabrício Pontin DiÁLOGO, Canoas, n. 39, p. 93-96, dez. 2018 | ISSN 2238-9024