Marcos Augusto Gonçalves

Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcos Augusto Gonçalves

Reação a clipe de Anitta expõe intolerância religiosa

Cantora perde milhares de seguidores com imagens de candomblé, sintoma da infestação religiosa na esfera política

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Anitta, a musa pop brasileira do reggaeton e do funk, acaba de lançar o clipe da canção "Aceita", produzido com belas cenas em preto branco, com direção de João Wainer e Ricardo Souza, em que aparece em rituais de candomblé. A simples divulgação das primeiras imagens fez com que ela perdesse, segundo afirmou, cerca de 200 mil seguidores nas redes sociais.

Como Anitta disse, sua espiritualidade é mais ampla. "Se um dia vocês me virem na Igreja Católica, na evangélica, na umbanda, no xamanismo, vão ver também porque eu gosto. Mesmo sendo macumbeira, sendo bem-vinda, eu vou". O clipe também mostra situações de outras religiões.

A reação negativa é pura intolerância, mais um mau sinal desses tempos de sectarismos e tribalização da vida social.

Anitta grava clipe de 'Aceita' em terreiro de candomblé no Rio de Janeiro
Anitta em cena do clipe 'Aceita', gravado em terreiro de candomblé no Rio de Janeiro - Ricardo Brunini/Divulgação

Conflitos religiosos e outros, hoje comumente enquadrados no termo "polarização", não são novidade. O efeito amplificador causado pelo advento da internet e campanhas de ódio nas redes sociais pode dar a impressão de que antes os debates e confrontos transcorreriam de maneira pacífica e educada. Tudo teria se tornado irascível depois do algoritmo, o que não é bem verdade, embora o ambiente tenha de fato piorado.

Desde seus primórdios no Brasil colonial, as religiões de matrizes africanas são alvo de terrorismo e perseguições, movidas inclusive pelo Estado, com a hipócrita aquiescência ou cumplicidade de muitos.

O primeiro Código Penal da República brasileira, diga-se, proibia a prática de "espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis, enfim fascinar e subjugar a credulidade pública". Com isso legalizava-se o caminho para a dura repressão à religiosidade de comunidades negras, embora não só.

Hoje, a Constituição assegura o respeito à liberdade religiosa, mas os terreiros e locais de culto de candomblé e umbanda continuam sendo alvos de intolerância e racismo, não raro com a indiferença cínica de parlamentares e autoridades públicas.

O governo de Jair Bolsonaro destacou-se em sua cruzada "terrivelmente evangélica" para sabotar o caráter laico do Estado e fomentar uma nefasta onda de religiosidade moralista, que certamente favorece a violência de fundamentalistas neopentecostais, milicianos e seja quem for contra as religiões de matrizes africanas.

Sabe-se que numa sociedade dissimulada e hipócrita como a brasileira, os cultos que se formaram desde a colonização contam com a adesão muitas vezes silenciosa de setores da classe média e da elite branca, em conhecidas manifestações de ecletismo e sincretismo. Tentar consolidar um muro de separação é deplorável.

A intromissão da religião na esfera política é um desastre que assume hoje no Brasil proporções alarmantes. É um festival de sacerdotes, pastores e pseudorrepresentantes de Deus e da Bíblia a vociferar sandices e apontar que isso ou aquilo é coisa de satanás. Os Malafaias e as Michelles que infestam o espaço republicano com seu teocracismo cristão rudimentar são um fenômeno perigoso para a democracia liberal, como não poucos têm apontado.

Manifestações em tese políticas, como a que Bolsonaro promoveu na avenida Paulista para tentar inutilmente livrar a cara de seu golpismo, tornaram-se espaço para proselitismo de igrejeiros reacionários. Deus, pátria e família, o velho lema fascista está aí, reabilitado —se é que algum dia nos deixou.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.