As cidades, o consumo de matérias-primas, a geração de resíduos e os fenómenos de alterações climáticas: a importância de conhecer e quantificar enquanto contributo essencial para o desenho de Estratégias e Planos de Ação para a sustentabilidade nas cidades.

O papel central que as cidades podem desempenhar na redução das emissões de CO2 e no combate às alterações climáticas é indiscutível. Embora as cidades cubram menos de 2% da superfície terrestre, utilizam cerca de 78% da energia disponível no planeta, consomem mais de 75% dos recursos naturais e são responsáveis por mais de 50% dos resíduos gerados a nível global.

Entre o conjunto de medidas que podem ser operacionalizadas pelas cidades, o investimento no uso eficiente das matérias-primas e na gestão de resíduos surge como um dos contributos de maior impacto para atingir metas e honrar os compromissos assumidos nos seus processos de atingir a neutralidade carbónica. O setor de resíduos é a terceira maior fonte de emissões antropogénicas de metano, cuja redução permitirá benefícios a curto prazo pelo aquecimento evitado.

Um dos desafios mais exigentes na gestão de resíduos nas próximas décadas é, sem dúvida, o desenvolvimento de novas estratégias ambientais alternativas e inovadoras às abordagens clássicas assentes na eficiência da prestação de serviço de qualidade ao cidadão. Não está em questão a importância que os serviços de recolha e encaminhamento para destino final eficazes apresentam na qualidade de vida das populações. Direcionar também os objetivos para o alcance de resultados que contribuam para os processos de prevenção de produção de resíduos e de neutralidade carbónica exige olhar para toda a atividade de forma integrada, abrangente e inovadora.

Não é apenas a sua dimensão, a escala do seu crescimento económico ou o volume absoluto de resíduos que tornam as cidades focos óbvios para promover mudanças sistémicas. É nas cidades que se agregam pessoas, materiais, produtos, capital e dados e, por isso, estas têm um potencial enorme como laboratórios vivos de inovação e de experimentação de novas soluções que, posteriormente, podem ser escaladas, adaptadas ou replicadas.

A importância de quantificar

Felizmente, são já diversas as cidades que aliam a redefinição das suas estratégias no setor de gestão de resíduos aos processos de transição para sistemas económicos mais circulares. Esta associação assenta no princípio da necessidade de redução da entrada de novos materiais nos seus territórios, atuando assim diretamente na eficiência do seu uso. A promoção de novos elos de cadeia de valor que utilizam matéria-prima descartada como fonte de matérias-primas secundárias e que estimulam novas áreas de negócio contribuem também para a redução da quantidade de resíduos que precisa de ser tratada.

Associado a estas novas abordagens está, normalmente, o conceito de metabolismo urbano. As cidades apresentam dinâmicas muito similares aos sistemas naturais. O seu funcionamento exige necessariamente o consumo de matérias-primas, energia e água e, da sua transformação, frequentemente ineficiente, são gerados resíduos e emissões que são novamente libertados no meio ambiente, fechando assim o seu ciclo e comportando-se como um ser vivo com a sua atividade metabólica. Este tipo de modelação tem-se revelado de extrema utilidade no conhecimento e na avaliação do tipo de materiais mais consumidos, no seu impacto para a globalidade dos sistemas urbanos, bem como na tipologia e quantidade de desperdício e resíduos gerados.

De forma resumida e sistematizada, a contabilização de fluxos de materiais revela-se vantajosa nos seguintes aspetos:

1. Identificar potenciais problemas;

2. Estabelecer prioridades de ação;

3. Apoiar a definição de políticas efetivas;

4. Monitorizar e comunicar resultados.

Cidades como Amesterdão ou Glasgow enveredaram, na fase inicial dos seus processos, pela aplicação de metodologias assentes nos princípios de metabolismo urbano, conseguindo quantificar quantidades de energia, água e materiais e identificar os setores de atividade que registam maior impacto no seu metabolismo territorial. Através dos resultados obtidos, procederam à elaboração de diagnósticos de referência no presente e, com base nestes últimos, foi possível, de forma estruturada, traçar um plano de ação integrado para os próximos anos. Atualmente, através da análise cronológica de quantitativos, estas cidades conseguem já medir a eficiência e comunicar o sucesso das ações levadas a cabo.

Perante a complexidade e a dimensão dos sistemas urbanos, é facilmente percetível a importância da sistematização e da quantificação de fluxos na identificação de eixos prioritários e na tipologia de medidas a aplicar nos processos de melhoria de eficiência dos fluxos de materiais, bem como nas suas consequências diretas, na redução da produção de resíduos, e indiretas, no contributo para a neutralidade carbónica.

E em Lisboa?

A cidade de Lisboa, através da Lisboa E-Nova, deu, já em 2004, os primeiros passos para a construção da matriz de materiais da cidade. À data, o desenvolvimento deste processo pretendia dar enquadramento à Estratégia Energético-Ambiental para a cidade e à definição de indicadores e metas de desempenho em matéria de gestão sustentável.

O processo desenvolvido assumiu-se como uma ferramenta de análise global disponibilizando informação agregada para os seguintes setores:

• Biomassa;

• Combustíveis fósseis;

• Minerais metálicos;

• Minerais não metálicos.

Imagem ilustrativa da Matriz de Materiais.

Esta abordagem permitiu, na altura, traçar o primeiro retrato do consumo de matérias-primas, água e energia, e do peso e pressão ambiental que têm no território da cidade. Ainda hoje funciona como documento de referência para o suporte a algumas estratégias setoriais.

Os resultados obtidos demonstraram o elevado peso do setor da Construção e Indústria, que, nesse ano, representou 69% do consumo total de matérias-primas. Outras das conclusões relevantes foi a demonstração da importância do peso que os produtos alimentares assumem no grupo de matérias mais consumidas pela cidade.

Em 2018, no âmbito do CEMOWAS2, projeto europeu financiado pelo programa Interreg Sudoe, que visava incorporar a perspetiva da economia circular nas competências das autoridades locais, foi desenvolvido um diagnóstico cujo objetivo foi caracterizar o ciclo de vida dos alimentos em Lisboa e mapear os atores mais relevantes da cadeia de valor.

Embora recorrendo a metodologias similares à descrita para a construção da matriz dos materiais, este processo integrou também uma perspetiva participativa ao auscultar organizações e painéis de cidadãos com relevância para a caracterização do fluxo de alimentos da cidade e na definição de linhas estratégicas, para potenciar o fecho do ciclo dos alimentos na cidade.

Imagem Ilustrativa do diagnóstico participativo CEMOWAS2.

Apesar da dificuldade em estabelecer um verdadeiro balanço, devido aos constrangimentos na obtenção de valores exatos de entrada de alimentos na cidade, foi possível perceber que há uma fração dos fluxos de entrada cujo destino é difícil de conhecer. A diferença entre as entradas e as saídas, dependendo da estimativa adotada, demonstrou variações entre as 490 mil e as 150 mil toneladas. Praticamente todos os alimentos consumidos na cidade de Lisboa são produzidos fora das suas fronteiras, sendo atualmente, de acordo com a informação disponível, praticamente impossível traçar a sua origem.

Os resultados obtidos, ainda que relevantes para o estabelecimento futuro de uma estratégia e de um programa de ação integrados rumo a uma gestão mais eficiente da cadeia de valor do sistema alimentar de Lisboa, devem ser entendidos como uma primeira abordagem, tendo em conta que a informação disponível para realizar o balanço do ciclo de vida dos alimentos é ainda muito incipiente.

Na sequência dos dois processos de diagnóstico acima apresentados, inserida nas diferentes experiências no âmbito do projeto Hub Criativo do Beato Living Lab (financiado pelo programa EEA Grants), está em curso uma nova iniciativa também com o objetivo de contribuir para a melhoria do conhecimento do circuito da matéria orgânica no metabolismo da cidade.

Através da interação com sistemas micro e muito localizados, concretamente focados nas atividades ligadas ao ramo alimentar, e com recurso a uma ferramenta de entradas e saídas de materiais, irá ser testada a capacidade de recolha de informação relativa a todos os elos da cadeia de valor, mais concretamente: produção, confeção, consumo e desperdício/descarte. Pretende-se ainda avaliar de que forma, partindo desta escala mais micro, esta ação poderá ser escalada e contribuir para o processo global de melhoria da eficiência da utilização da matéria orgânica na cidade.

Por último, e não menos importante no contributo da Lisboa E-Nova para a capital portuguesa no que toca aos processos de caracterização e monitorização, refiram-se os Observatórios Lisboa. Esta ferramenta, nas suas diferentes valências Água, Energia, Mobilidade e Resíduos, dá informação sobre o comportamento da cidade e da sua população nestas matérias. No separador dedicado à produção de resíduos urbanos, são evidentes o potencial de melhoria e a oportunidade de redução de produção e de aproveitamento.

Da operacionalização das várias abordagens anteriormente apresentadas, são várias as lições aprendidas. Para além da demonstração da importância que as mesmas demonstram ter para os processos de construção de estratégias, roteiros e planos de ação territoriais, fica também claro o potencial que processos de recolha de informação assentes em abordagens inovadoras, como a informação disponibilizada pelos cidadãos, a exploração de tecnologias de blockchain ou o registo de código de barras, podem trazer ao processo.

Outro aspeto não menos relevante para o sucesso de aplicação deste tipo de abordagens é a necessidade da evolução dos formatos de disponibilização de dados por parte das entidades responsáveis pela sua recolha e organização.

Tirar mais partido do potencial da informação é, sem dúvida, uma forma sustentada de promover mudanças sistémicas de sucesso nas cidades, permitindo um conhecimento mais realista do presente e a criação de uma visão dos objetivos que se querem atingir no futuro. Aliada a processos de experimentação viva e a métodos inovadores, torna-se uma ferramenta poderosa de suporte à gestão local na promoção de processos de gestão mais transparentes, mais claros ao nível da decisão de financiamento e de fácil perceção pelas comunidades.

A publicação deste artigo faz parte de uma parceria entre a Smart Cities e a Lisboa E-nova, e foi originalmente publicado na edição de Outubro/Novembro/Dezembro de 2022 da Smart Cities.