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Por Thiago Lima — do Rio de Janeiro

Arquivo Pessoal

Quando Jefferson (458 jogos) entrou no Top 3 dos jogadores que mais defenderam o Botafogo, no último mês de junho, o goleiro passou a ficar só atrás dos maiores ídolos alvinegros de todos os tempos, os inalcançáveis Garrincha (612) e Nilton Santos (721). Dois nomes que foram campeões do mundo pelo Brasil e fizeram fama nacional e internacional. O até então terceiro no ranking, por sua vez, é pouco conhecido do grande público e de parte da própria torcida.

Com 453 partidas e seis gols (*), Waltencir agora é o quarto da lista. Considerado um herói da raça e injustiçado por quem o viu jogar no Botafogo, entre 1965 a 1976. Nascido em Juiz de Fora (MG), o ex-lateral-esquerdo chegou a General Severiano ainda na base, mas logo subiu para os profissionais e fincou raízes em um tempo de enorme concorrência. Por sinal, fez da versatilidade o seu ponto forte: jogou em quase todas as posições no clube, exceto goleiro e centroavante.

Família lembra história de Valtencir, quarto jogador que mais jogou pelo Botafogo

Família lembra história de Valtencir, quarto jogador que mais jogou pelo Botafogo

Waltencir chegou a ser convocado uma vez pela Seleção, em um combinado carioca formado basicamente por jogadores do Botafogo, e fez um dos gols da goleada por 4 a 1 sobre a Argentina, com direito a "olé", em amistoso no Maracanã.

Nesta segunda-feira, completam-se 40 anos de sua trágica morte. Cerca de dois anos após sair do Botafogo, Waltencir estava no Colorado (clube que deu origem ao Paraná) e disputava um jogo no Estádio Willie Davids, em Maringá, contra a equipe da casa pelo Campeonato Paranaense. Quando em um choque com Nivaldo levou a pior: sofreu três fraturas na coluna cervical e dupla ruptura da medula. Foi socorrido, mas chegou morto ao Hospital Santa Rita. Tinha só 31 anos.

Veja o lance e a reportagem do Jornal Nacional da época abaixo.

Jornal Nacional noticia a morte de Waltencir em 1978

Jornal Nacional noticia a morte de Waltencir em 1978

Cenas que familiares como a esposa, Maria Therezinha, e os filhos, Igor e Ticiana, até hoje nunca viram. Uns por falta de coragem, outros por desinteresse ou por não encontrarem a imagem. Mas engana-se quem pensa que a tragédia afastou o futebol da vida deles. Pelo contrário, os filhos (e netos) herdaram o amor pelo esporte e pelo Botafogo. A Família Senra recebeu o GloboEsporte.com em Niterói para contar um pouco dessa história, que inclui até homenagem ao sucessor do pai, Jefferson.

Confira a entrevista na íntegra:

GloboEsporte.com: Vocês tinham quantos anos na época do acidente?

Ticiana: Um ano e meio mais ou menos.

Igor: Eu tinha quatro anos, nasci na mesma data dele, 11/11.

Como ficaram sabendo do falecimento?

Therezinha: Nós morávamos em Curitiba. Era um jogo do Campeonato Paranaense, e foi o primeiro que ele jogou fora da capital. O jogo foi em um domingo, e eu vim para o Rio na sexta-feira. Eu estava aqui com eles, e ele viria também. Por muita coincidência, nós estávamos indo pegar o avião e nos deram quatro bilhetes. E ele falou: "Não, eu não vou, são só três".

Therezinha: Estávamos no sítio de uma prima, era uma festa de uma tia. Estava transmitindo um jogo no Maracanã, e uns primo's ouviram no rádio que tinha acontecido alguma coisa com um ex-jogador do Botafogo. Na mesma hora acabou a festa, a gente foi para a casa de uma prima, que era mais perto. Foi lá que nos disseram o que aconteceu e me trouxeram para casa em Niterói.

Jornais na época escreviam o nome com "V" de forma errada — Foto: Reprodução / O Globo

Imprensa acompanhou também o enterro em Niterói — Foto: Reprodução / Jornal do Brasil

Therezinha: Os jogadores e dirigentes do Colorado na época foram no apartamento onde a gente morava lá e não encontraram ninguém. Eles não sabiam que eu tinha viajado. Uma mulher de um jogador, que soube que eu vinha para cá com as crianças, é que comentou com o clube, e eles fizeram tudo. Eu nem voltei para lá.

Therezinha: Eles, muito pequenininhos, não sabiam nada ainda, só depois de maior. Fui com psicólogo, devagarzinho, ele era agarrado com o pai. A gente foi levando devagar até o dia que souberam com naturalidade. Praticamente eles não conheceram muito o pai, não têm muita lembrança.

E os filhos, o que têm de lembrança?

Igor: Memória do acidente para trás não tenho nenhuma. Não sei se é um branco até psicológico ou não. Eu era até um pouquinho mais velho que ela, tinha quatro anos, ela quase dois. Começo a ter alguma coisa sobre o que aconteceu com seis, sete anos para frente. Até quatro não tenho nenhuma imagem, nada que me remeta com ele, mesmo em casa, ou brincando...

Therezinha: Tem fotos, vídeos...

Ticiana: Eu também não me recordo de nada, não. De colégio, minha mãe trabalhava muito a cabeça da gente. Dia dos Pais ia sempre um tio, ou a mamãe mesmo. Mas recordar pequenininha, não dá para lembrar.

Waltencir com os filhos Igor e Ticiana no colo — Foto: Arquivo Pessoal

Tiveram força para ver a imagem do choque?

Therezinha: Não, nunca vi. Nem jornal peguei para ler.

Ticiana: Também. Nem sei se tem (imagem).

Igor: Também nunca vi, nem me interessei muito. Vi reportagem sobre o jogador (Nivaldo), o cara deu uma parada, ficou em choque...Foi uma fatalidade incrível.

Vocês chegaram a falar com o Nivaldo? Acham que ele teve culpa?

Therezinha: Um tio do Waltencir, Laís (que morava em Rio Bonito e hospedou o sobrinho quando ele saiu de Juiz de Fora para jogar no Botafogo), escreveu uma carta para o Nivaldo o inocentando. Porque tinha certas pessoas que falavam que foi de propósito. Mas não foi para matar, foi para tirar da jogada, coisa normal.

Sabe se ele chegou a receber essa carta?

Therezinha: Não sei.

Ticiana: Eu já o procurei, mandei mensagem no Facebook, mas não obtive resposta. Não por curiosidade, e sim para o conhecer e dizer a ele que tínhamos certeza que o ocorrido foi uma fatalidade, que ele não teve culpa nenhuma e que a nossa família tinha certeza disso. Até porque sempre me falaram que ele na época tinha ficado em choque, pois alguns jogavam na mídia que ele foi culpado, e com isso na cabeça qualquer pessoa poderia pirar.

O GloboEsporte.com encontrou Nivaldo, que atualmente mora em Curitiba e trabalha no ramo da engenharia. Por telefone, o ex-jogador confirmou o recebimento da carta e deixou uma mensagem para a família de Waltencir:

Como foi a vida de vocês depois dessa tragédia? Conseguiu voltar ao normal?

Therezinha: Foi muito difícil porque eu era muito nova, mas tive apoio da família, que é enorme e muito unida. Foi mesmo a força da família que deu para levar até onde eu pude. Coloquei eles no melhor colégio que tinha, com dificuldade, mas consegui formar os dois, ele é engenheiro e ela advogada. Eu vivi praticamente a minha vida para eles. Continuei levando ao estádio, tudo que era jogo eu os levava. Juntava a turma toda e ia. Tenho um cunhado que é Botafogo, que foi como um pai para eles, e sempre ia também.

Ticiana: Isso eu lembro perfeitamente.

Vocês são religiosos? A religião ajudou?

Therezinha: Somos. Ele (Waltencir) era muito católico, muito católico...

Ticiana: Estudamos em colégio católico também.

Therezinha: Ajudou muito, muito.

Alguém da família tentou ser jogador depois disso?

Ticiana: Sim. A gente tem um primo em Juiz de Fora, Pablo, que tentou.

Igor: Ele jogou no Juventude, na Alemanha, mas voltou depois e desistiu. Futebol é meio ingrato, né? Até os 19 anos vai bem, depois...

Therezinha: Ele treinou algumas vezes no Vasco, mas era muito difícil de Juiz de Fora para cá.

Acha que a tragédia influenciou de alguma forma?

Ticiana: Sim, a mãe dele. Minha tia tinha medo, ela falava.

Therezinha: A avó tinha mais.

E o Igor? Nunca quis ser jogador?

Igor: Não, nem quis e nem tinha talento. Até os 25 anos joguei muita bola por aí. Campeonato de colégio, pelada... O Roberto Miranda, o Gerson, assistia à muita pelada com eles nos clubes aqui de Niterói e São Gonçalo. Eles tinham uma turma de ex-jogadores do Botafogo e jogavam toda semana. Participei muito dessas peladas.

Ticiana: Eu já treinei. Foi no Praia Clube aqui, o técnico do feminino era o Jair Marinho (ex-jogador do Botafogo).

Mas foi como hobby ou pensou mesmo em seguir carreira?

Ticiana: Não, não, fui como hobby mesmo.

Vocês têm noção da importância que o seu pai teve para o Botafogo?

Igor: Noção eu tenho. Não foi um jogador tecnicamente apurado, mas todo mundo que comenta diz que na raça era imbatível. Com ele não tinha jogada perdida, que se doava em campo mesmo. O tipo de jogador que a torcida gosta. Aquele cara que dá o sangue para vencer os jogos. Tipo de jogador que falta hoje, infelizmente (risos).

Igor: Encontro botafoguenses mais velhos que nós, que viram ele jogando. E realmente a gente vê a magnitude, importância, o quanto ele representou, por esse fato do número de jogos. Estar no Botafogo desde 65 até 76, se não me engano. Hoje em dia é quase impossível para um jogador de linha. Hoje a gente vê o Jefferson alcançando essa marca, mas de linha seria uma exceção, não existe mais praticamente.

Acham que ele deveria ser mais lembrado, tanto pela torcida quanto pelo clube?

Igor: Sim. Agora é o quarto que mais jogou no Botafogo. Obviamente sempre ficou atrás de Garrincha e Nilton Santos, que são lendas do clube, "ídolos mor", vamos dizer assim. Isso acho que acaba ofuscando o que ele fez pelo Botafogo. Todo mundo fala muito nos jogadores que chegaram à Seleção, fizeram fama internacional, e ele como nunca chegou a esse patamar... Acho que é meio natural também, não julgo a torcida por não lembrar muito. Mas os mais velhos, quando chegam até nós, é com muito carinho, emocionados, já vi gente chorando...

Therezinha: O Zagallo até hoje não pode chegar perto deles (risos).

Igor: Situações até que chegam a ser engraçadas, mas sempre com muita emoção pura, sabe? Você realmente nota a importância dele para o Botafogo.

E qual foi a sensação ao ver Jefferson ultrapassando seu pai no Top 3?

Igor: Eu achei muito bacana. Sempre fui fã do Jefferson.

Ticiana: Eu também.

Ticiana, Miguel, Igor e Igor (filho) entregaram placa a Jefferson — Foto: Vitor Silva/SSPress/Botafogo

Igor: A gente participou da homenagem. Nós entregamos a placa para ele. Tudo muito corrido, o tempo de falar com ele foi muito rápido porque já ia começar o jogo e tal. Mas de qualquer forma para a gente é super gratificante. Não tenho nenhuma raiva ou ciúme porque o Jefferson bateu a marca dele. Pelo contrário, fiquei até feliz e emocionado por ele ultrapassá-lo, e a gente poder entregar essa placa para ele. Foi muito bacana da parte do Botafogo também.

A família toda é Botafogo?

Ticiana: Quase 99% da família é botafoguense.

Therezinha: Eu sou a quinta filha, as de trás todas são botafoguenses. Meu marido, tudo...

Ticiana: E os maridos da minha geração, do Igor, alguns são botafoguenses também.

Therezinha: Muitos sobrinhos também.

Ticiana: A torcida está crescendo, nossa família está fazendo crescer (risos).

Como você e Waltencir se conheceram?

Therezinha: Eu morava em Rio Bonito (RJ), e ele tinha uma tia lá, irmã da mãe dele. Então estava sempre lá. Aí, cidade pequena, né? Fizeram um grupo, e um deles era namorado da minha irmã. Eu o conheci através dele, a gente começou a namorar. Namoramos seis anos, depois viemos para Niterói. O casamento foi lá também.

Ticiana: Fechou a cidade (risos).

Therezinha: Foi em uma segunda-feira. E tinha que ser assim, porque final de semana tem jogo.

O Waltencir já era botafoguense antes de jogar no Botafogo?

Therezinha: Era. O pai dele era Botafogo, e o sonho dele era que o filho fosse jogador do clube.

E como é a relação de vocês com o time? Vão aos jogos, ficam na TV...

Da esquerda para direita: Igor (filho), Igor, Therezinha, Ticiane e Miguel — Foto: André Corrêa

Igor: Estou em 300 grupos de WhatsApp, vou a todos os jogos... Participação direta, mas como torcedor. Nunca entrei em nada no clube de política, sou puramente torcedor.

Ticiana: Já fui a muitos jogos, hoje vejo mais do sofá. Mas vejo, gosto muito de futebol. E participo muito do Botafogo. Estão sempre procurando a gente para alguma coisa, e participo sempre.

O que estão achando do time atual?

Igor: Desse ano lamentável, né? Muitos problemas que a diretoria propriamente deixou a desejar, e aí, como uma bola de neve, a gente está vendo a consequência. Mas a gente tem fé que vai sair dessa. Não está tudo arrasado, já tivemos fases até piores. Esse ano é para passar a borracha, mas acho que a gente ainda vai sair numa boa.

Ticiana: Assim espero, né? Tem que ter fé.

Mas estão mais preocupados com rebaixamento ou sonhando com o título da Sul-Americana?

Igor: O título da Sul-Americana não é impossível, mas se eu tivesse que escolher hoje escolheria ficar na Série A, por incrível que pareça (risos). Apesar de estar há tanto tempo sem título, internacional principalmente. O título, sinceramente, no nível no futebol no Brasil, é possível com esse elenco atual, não vejo nada inalcançável nesse sentido. Mas temos fé de ficar na Série A porque o baque para o Botafogo, principalmente financeiro, agora que está começando a se endireitar ao longo dos últimos anos, seria terrível.

Ticiana: Eu quero o título. Claro que rebaixamento também não quero, mas quero o título (risos).

Igor: Claro, ser campeão e ir para a Série B seria pior. Mas ser campeão e ficar na Série A, mesmo em 16º, seria a glória do ano. Talvez seria nosso principal ano dos últimos 10 (risos). Um ano tão trágico pode terminar assim. Isso são coisas do futebol mesmo.

O que fica do Waltencir para vocês?

Igor: Para mim a única coisa que ficou assim é o Botafogo. Vivo até hoje, vou a todos os jogos, viajo... Onde tem Botafogo eu estou no meio.

Ticiana: Como tem essas recordações, a gente vê sempre e se acostumou. A gente vai em General Severiano e é convidado. Tenho uma turma que montaram, "Confraria da Amizade Botafoguense", que nos convida para ir a encontro, pede para levar alguma coisa. Eles adoram porque é relíquia o que a gente tem guardado.

Acervo da família inclui faixas de títulos, fotos, recortes de jornais... — Foto: André Corrêa

... Camisas usadas por Waltencir nos jogos por Botafogo e Seleção... — Foto: André Corrêa

... E até chuteira original da época, com travas de parafuso — Foto: André Corrêa

Como são religiosos, imagino que acreditem que o pai de vocês está os vendo do céu. Se pudessem falar algo para ele hoje, o que diriam?

Ticiana: Que ilumine sempre a gente (se emociona).

Igor: Difícil falar, sou bem tímido. Mas todo jogo do Botafogo, ainda mais os mais importantes, a gente sempre lembra dele, achando que vai entrar em campo e resolver.

Ticiana: Dar aquele chute, né?

Igor: 0 a 0 aos 45, ele vai entrar e marcar. Quase 100% dos jogos que assisto eu imagino essa cena. Eu sei que ele está perto da gente e falo com ele mais sobre isso.

Therezinha: Ele está presente, sempre presente.

(*) Dados do historiador Eduardo Santos.

— Foto: Botafogo de Futebol e Regatas

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