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Resgate – História e Arte III As torres das igrejas de Itu Dedico este artigo ao amigo José Saia Neto e ao ex-colega Mauro Bondi a história da arte também é feita de obras ausentes! Jorge Coli 1 Não foi sem propósito que escolhemos as torres das igrejas de Itu para apresentar algumas reflexões sobre o patrimônio religioso ituano. São, invariavelmente, o último elemento a ser construído nas igrejas. Determinam, na maior parte delas, o final do ciclo criativo originário. A experiência adquirida com o restauro de inúmeras igrejas do período colonial em todo o Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, por sua vez apoiada em pesquisas sobre aquelas (poucas) que conservaram sua documentação, nos ensinaram que a construção delas iniciava-se pela capela mor, espaço destinado ao altar, pois, uma vez prontificado, já permitia, mesmo se ainda aparelhado com equipamentos ainda toscos e provisórios, a realização dos ofícios espirituais. O edifício prosseguia com a construção dos compartimentos do entorno da capela mor, destinados à sacristia (para a guarda dos paramentos e objetos de culto) e à “fábrica” ou secretaria (onde eram registradas as demandas relativas a missas, batismo, casamentos, sepultamentos, doações, etc.), de cuja arrecadação dependia em grande medida o prosseguimento da construção da igreja que viria a ser a nave, espaço mais generoso da igreja para o acolhimento dos fiéis e onde se reservava local de destaque para o púlpito, peça obrigatória destinada aos sermões aos devotos. Na nave ou nos seus corredores laterais reservava-se os locais onde figurariam conjuntos de elementos artísticos, capelas ou altares laterais, dispostos até as proximidades da entrada principal da igreja onde, por cima, era alojado o coro. No planalto paulista, até meados do século XVIII, as igrejas, construídas em taipa de pilão como todos os demais edifícios, quando erguia-se a última parede da nave, podia-se dizer que o edifício estava praticamente concluído, pois essa, externamente, nada mais era do que a fachada da igreja, ainda sem revestimento claro, mas onde se destacava o madeiramento incrustrado na taipa demarcando os vãos da portada e das janelas do frontispício. Como suponho que até o final do século XVII, as igrejas paulistas ainda faziam uso do alpendre na entrada, mesmo em áreas urbanas, restaria construir esse apêndice que tão bem as caracterizavam. Na segunda metade do século XVIII operou-se uma pequena, mas significativa transformação na construção das igrejas. Elas continuariam a ser edificadas pelo sistema da taipa de pilão, porém passam a se utilizar também do tijolo e da pedra de cantaria. E as que não fizeram nesse período, acabariam fazendo posteriormente, já século XIX adentro. Resgate – História e Arte III Mas em que consistiu essa mudança? Consistiu de certa forma em transpor para fora das igrejas, para as suas fachadas, as formas artísticas já presentes no interior delas – nos retábulos principalmente, talhados em madeira e obedientes ao estilo da época, o barroco – e já de longa data praticada em outras regiões da Colônia, que, entre nós paulistas de ”serra acima”, a taipa até então não permitira que fosse transplantada à parte exterior dos edifícios, limitando a sua decoração externa aos entalhes na madeira dos pórticos de entrada, nas portas, nas janelas e umbrais, nas colunas de seus alpendres e nos cachorros dos beirais. Assim, a taipa de pilão associada à cantaria de pedra e à alvenaria de tijolo possibilitou dar início a um processo que o arquiteto Luís Saia chamou de renovação estilística e que nada mais foi do que a atualização da paisagem urbana paulista à das demais regiões da Colônia, mesmo que limitada às grandes igrejas, aos prédios públicos e a algumas residências urbanas1. As fachadas passaram a apresentar diversos elementos de variadas ordens como soluções meramente plásticas, apenas de modenatura, independentes das necessidades construtivas como nos explicou Lucio Costa: Se o frontão já não era mais tão-somente uma empena, a coluna um apoio, a arquitrave uma viga, mas simples formas plásticas de que os arquitetos se serviam para dar expressão e caráter às construções – por que não encarar de frente a questão e tratar cada um desses elementos como formas plásticas autônomas, criando-se com elas relações espaciais diferentes e garantindo-lhes assim novo alento de vida ao velho receituário greco-romano ‘à bout de forces’?.2 Esse procedimento iniciou-se na Capital paulista em meados do século XVIII com a pedra de cantaria primeiramente aplicada pelos frades beneditinos no frontispício da igreja do mosteiro (da qual resta como testemunho uma pedra com o nome de Tebas nela entalhada), depois pelos carmelitas e franciscanos, para em seguida avançar para outras importantes Vilas do interior paulista, inclusive em Itu, então a mais próspera da Capitania3. 1 A diferençar o panorama que então se formou, as igrejas jesuíticas mantiveram suas configurações ainda por um longo período, à exceção da igreja do Colégio, na Capital, que reformulou sua fachada fazendo também uso da pedra de cantaria, nesse mesmo período, por iniciativa Morgado de Matheus, onde instalou a sede do governo da Capitania. As demais capelas, com a expulsão da Companhia de Jesus, conservaram suas feições, à exceção da capela de São Miguel reformada pelo franciscano Mariano Veloso. COSTA, Lucio – A Arquitetura Jesuítica no Brasil in ARQUITETURA RELIGIOSA. Textos Escolhidos da Revista do IPHAN. MEC IPHAN USP FAU. p. 15. 2 3 Foi o início de um lento processo de substituição da taipa a qual só será definitivamente abandonada no último quartel do século XIX, quando aqui já haviam chegado alemães, suecos e prussianos para os trabalhos da Fábrica de Ferro de Ipanema, para as estradas e obras públicas da Província, para as fazendas de café do Senador Vergueiro e associados e já dera início o ingresso cada vez maior de italianos para atender a expansão cafeeira rumo ao Oeste paulista. Muitos deles permaneceriam na Capital, em Santos e os que não eram lavradores buscariam as cidades interioranas em busca de outras oportunidades. Todos eles trouxeram a técnica e a experiência de artesãos, operários, e muitos deles de construção de casas e prédios. Mas esses já eram outros tempos. 2 Resgate – História e Arte III E as torres? Dissemos serem elas as últimas a serem construídas. Mas deixemos esse imponente e garboso elemento arquitetônico para mais adiante, para considerar ainda dois outros aspectos da construção das igrejas daquele recuado período. Primeiramente dizer que o que até aqui consideramos acerca da construção das igrejas podia não representar propriamente projeto arquitetônico e decorativo completo, elaborado na planta por arquiteto ou engenheiro para ser executado tal qual estivesse ali representado. Mais ainda nos parece quando vemos a lenta evolução das obras; uma progressão de ações em etapas com vistas a uma totalidade talvez não inteira e previamente definida; mas projetada paulatinamente a partir dos recursos existentes e futuros, frutos de promessas junto aos devotos e cobrados à medida da disponibilidade de artífices e artistas para sua execução. Arte e Arquitetura entremeadas; ora uma parecia conduzir a obra, ora a outra. Difícil dizer o que antecedia ao que, e o que era consequente do que. Por exemplo: a capela mor, sua dimensão e altura determinavam o retábulo, sua dimensão e altura? Ou seria o contrário? 4 Estendendo a questão à nave: eram os altares, o púlpito, as tribunas que definiriam sua dimensão e altura, ou seria o inverso. Dá-se geralmente pouca atenção à importância das peças artísticas quando se analisa as igrejas no momento de sua construção, pressupondo que elas simplesmente se encaixam no espaço arquitetônico já construído – o que é equívoco que precisa ser evitado, especialmente quando estamos a considerar o período barroco, cujos aparelhos retabulares, imaginária e pinturas exigiam generosos espaços para que pudessem expressar todo o majestoso cenário que apresentavam. Assim, não era a Arquitetura que ditava como deveriam ser confeccionadas essas peças; ao contrário, via-se obrigada a acolher tais equipamentos artísticos, precisando requisitar aos artistas desenhos com dados métricos suficientes para estimar e prover o espaço que precisariam ter em cada uma das áreas da igreja, antes de iniciar a construção, caso contrário seriam forçados a corrigi-la durante o desenvolvimento dos trabalhos de ornamentação.5 Mas a construção dependia também e muito de recursos, já existentes ou angariados, e sobre tudo da disponibilidade de artífices e artistas. Esses, a Capitania de São Paulo não dispunha com a abundância de Minas ou Rio de Janeiro. Aproveitava-se o que se oferecia no momento. A construção das igrejas estava pois na dependência deles, e como as obras comportam várias e sucessivas etapas, essas eram executadas como podiam ser. Difícil, pois, imaginar planejamento, projeto executivo, planilha a serem obedecidos rigorosamente. Mesmo assim, cada qual ao seu momento como podiam ser aproveitados, perfazia-se um período relativamente longo, quarenta, 4 Ver a respeito nosso artigo Anotações acerca do "Papel de obrigação" do Entalhador Jozé Fernandez de Oliveira (1793) in https://sites.google.com/site/resgatehistoriaearte/ 5 O que muitas vezes pôde ser observado nas paredes de taipa quando, antes de iniciar as obras de restauro, procedendo-se à devida prospecção, verificou-se então o que ocorrera no tempo de sua primitiva construção; distinguindo-se aliás de outras marcas de intervenções posteriores, reconhecidas facilmente pelo arquitetorestaurador experiente. 3 Resgate – História e Arte III cinquenta, sessenta anos – o tempo de criação artística da obra sacra em sua totalidade histórica. O que nos leva a considerar outro aspecto: essa trajetória, nas igrejas mais ricas, matrizes p. ex., se realizou sob impulso de grande intensidade artística. Sua realização, se consumada sob a égide de um só estilo, ganhou unidade de excepcional qualidade, arquitetônica e artística, que a definiu como verdadeira obra de arte e forjou identidade singular. Sua manutenção e conservação integral porém raramente se observa. Outra fase ou ciclo, então, transcorre, o de sua desagregação que é tanto natural – desgaste de partes do edifício e obliteração de peças artísticas – como provocada pela incúria das pessoas que deveriam zelar pela sua conservação. Esse processo se desenvolve já noutro tempo, quando também o seu valor artístico original entra em depreciação sobretudo quando do surgimento de novos estilos que chamam a atenção do cidadão, do espectador comum, e especialmente da elite culta. É o poder de atração do novo em detrimento do velho, do antigo, por sua vez desvalorizado e condenado ao esquecimento ou à destruição. Porém nem sempre isso é possível. Destruir custa; construir tudo novo ainda muito mais. Opta-se então pelo caminho mais fácil, por modernizar o velho e o antigo, vestindo-o com a roupagem nova e atual. Foi o que ocorreu com inúmeras igrejas coloniais pelo país afora; embora nem sempre em razão de um estilo novo propriamente dito, pois que os estilos anteriores por vezes se reapresentam diante de nós, como novidade, fetichizados. Mas não antecipemos as coisas. Um terceiro aspecto a considerar é que, em nosso passado colonial, as igrejas demarcavam pontos geográficos que determinavam os traçados urbanos centrais e que permaneceram na maioria de nossas cidades e que hoje constituem o centro histórico delas. Em Itu esse traçado é bastante nítido, apesar da ausência de uma referência importante. Desenvolveu-se no alto do espigão que corta a cidade de Norte a Sul, a partir da igreja do Bom Jesus (primitiva Matriz que, antes de ser transferida para o centro desse eixo, teve durante muito tempo a companhia das igrejas das Ordens 1ª e 3ª de São Francisco, infelizmente desaparecidas no final do século XIX), terminando no extremo oposto, no conjunto carmelitano, lamentavelmente mutilado um ano após o seu tardio tombamento. Essas três igrejas tiveram o adro espaçado em grandes praças que se constituíram a partir de suas implantações e demarcam o sítio histórico ituano que convive com as atividades urbanas modernas da cidade que lá ainda permanecem com grande vitalidade.6 6 Representativo de época posterior, mas muito significativo, o edifício da Convenção Republicana de Itu, marco da história política do país – razão porque foi preservado pelo IPHAN – dotado hoje com mobiliário que reporta à época das campanhas pela implantação do regime republicano no país. 4 Resgate – História e Arte III I Como ao tratar de questões relacionadas à história do patrimônio religioso paulista sempre nos deparamos com as problemáticas de sua salvaguarda, dessa vez resolvi enveredar um pouco pelos caminhos da Teoria; tentaremos apoiar nossas considerações orientando-nos em autores muito respeitados, constantemente citados em estudos acadêmicos e mais recentemente também por técnicos que atuam nos órgãos de preservação que valem-se de suas ideias e proposições para embasar trabalhos funcionais que por vezes definem o destino dos monumentos submetidos ao crivo de suas fundamentadas apreciações. Não temos, todavia, pretensão de ombrear com os colegas que dedicaram anos e anos de estudos, muitas vezes em prejuízo até de suas carreiras profissionais, atrasando evolução funcional, mas que sem dúvida resultam na elevação da qualidade e em proveito das equipes técnicas em que atuam. Faremos uso de alguns teóricos, à medida de nossa compreensão, esforçando-nos para aplicar suas ideias, conceitos e proposições no intuito de tornar mais claras nossas considerações e análises. Penso (Eu) que Aloïs Riegl quando escreveu O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese7 tinha, entre outras premissas, a percepção e o prazer estético que observava em si mesmo e nas pessoas de seu tempo. Os juízos acerca dos monumentos, elabora-os apoiado na crença da capacidade humana de admirar e avaliar por meio dos sentidos e das faculdades da mente. É preciso também ter em conta que a visão riegliana do espectador moderno, era visão do espectador do final do século XIX começo do XX. Este, por sua vez, culto ou não, observaria os monumentos já consciente da transitoriedade ou volubilidade das criações artísticas, passadas e presentes, que constituíam o patrimônio monumental europeu. Chamo a atenção, primeiramente, para duas importantes dimensões que não podem ser desprezadas quando se procura compreender a visão riegliana, porque estão contidas nela: a extensão temporal do acervo artístico que o espectador europeu tinha (e ainda tem) diante de si, em seu próprio país e no território europeu, contemplando-o em toda a sua diversidade e riqueza, monumentos de todas as épocas, desde a Antiguidade greco-romana ou mesmo anterior, bem como os das épocas posteriores, criados sob inspirações artísticas peculiares (mas depois submetidos a intempéries naturais e suscetíveis a alterações pespegadas em razão de depreciações que foram vítimas), tudo diante do espectador moderno europeu a fruilos sob o influxo das motivações próprias de seu tempo. Esse (que continua sendo a despeito da destruição ocasionada pelas duas Guerras Mundiais) o panorama artístico de enorme e profunda densidade histórica e cultural.8 7 Riegl, Aloïs – O culto Moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia. Editora da UCG. 2006. Apresentação de Françoise Choay. 8 Ao que devemos somar a contribuição de outros povos, cuja produção artístico-cultural foi assimilada pelas potências europeias a partir da Idade Moderna; isso sem contar os tributos no mais das vezes involuntários pagos pelos povos subjugados em objetos de arte de grande valor deles expropriados. 5 Resgate – História e Arte III Chamo a atenção para essas dimensões porque acredito ser importante e necessário distinguir o que, à mesma época, o espectador brasileiro dispunha no território nacional para ver e admirar, uma vez que a fruição do que restava das edificações de nosso passado histórico (pouquíssimas se comparadas às nações europeias), embora tivessem merecido a atenção de alguns espectadores cultos desde meados do século XIX, desprotegidas, desapareciam, destruídas simplesmente ou mascaradas por reformas modernizantes. Nas cidades que conheciam rápido aumento de população e urbanização acelerada, como São Paulo, o próprio Poder Público comandava esse processo.9 A preocupação pela preservação de nosso passado histórico ainda teria que aguardar algumas décadas até que viessem a ser tomadas medidas de reconhecimento e proteção de nossos monumentos de valor histórico e artístico10. Enquanto a preservação na Europa tinha já um longo percurso, acumulara já experiências acerca da conservação dos monumentos arquitetônicos e restauração de muitos deles, submetidas a crítica e defesa que geraram as teorias que só viriam a ser conhecidas e debatidas no Brasil décadas depois quando os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional já estavam consolidados entre nós, com metodologia própria, concebida por um grupo de arquitetos liderado por Lúcio Costa. Cabe-nos, desse modo, considerar ainda duas coisas: primeiro, reconhecer a diferença entre a riqueza e densidade histórica do patrimônio do Velho Mundo e o do brasileiro. Observação que é necessário fazer tanto para o espectador do tempo de Aloïs Riegl como o espectador dos dias atuais. Segundo reconhecer a grande distância (ou atraso) entre tomada de consciência e as primeiras medidas adotadas na Europa em relação às ações de identificação, proteção e restauro do patrimônio monumental em relação àquelas iniciadas no Brasil. Cerca de cem anos separam as obras de restauração de Viollet Le Duc, efetuadas em Saint Chapelle (1836), e as primeiras obras executadas no Brasil pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1939).11 Tais aspectos, penso, servem-nos como advertência pois, como explica o próprio Riegl, a apreciação estética dos monumentos, bem como os juízos que fazemos sobre eles, são distintos daqueles quando de sua criação. 9 SEVCENKO, Nicolau – PINDORAMA REVISITADA Cultura e Sociedade em Tempos de virada. Editora Fundação Peirópolis. 2000. 10 Ouro Preto é reconhecido pelo Governo brasileiro como Monumento Nacional em 1933 (Decreto nº 22.928, de 12 de julho de 1933) e quatro anos após com a criação do Serviço do PHAN (Decreto-lei nº 25 de 30 de novembro de 1937) deu-se início a identificação e proteção do patrimônio brasileiro, que empreendeu a restauração de inúmeros monumentos que haviam perdido suas feições originárias, executando-a mediante metodologia concebida pelo grupo de arquitetos liderado por Lucio Costa. 11 Ao que devemos também acrescentar outra não menos importante, relativa à criação das universidades brasileiras, constatando que a primeira, a Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, ocorreu em 1920, seguida posteriormente pelas estaduais, salientando-se a Universidade de São Paulo, em 1934, e, entre elas, a pioneira Escola de Arquitetura de Belo Horizonte (1930). 6 Resgate – História e Arte III Assim também, seguindo sua linha de pensamento, a apreciação que fazemos hoje, neste primeiro quartel do século XXI, a fazemos mediante a ótica de nossos dias, que todavia encontra-se por sua vez em constante transformação/construção em razão do dinamismo da vida cultural contemporânea, porém entremeada por visões distintas, uma apoiada nas realizações e experiência outra no embasamento teórico e visão crítica, conflitantes portanto. Aloïs Riegl tomou como pressuposto para cultuar e valorar os monumentos dois momentos – o de sua criação e o de sua apreciação estética – e não apenas os de sua transformação (processo de alterações ou modificações) no transcurso do tempo como querem os historicistas; embora tal aspecto tenha merecido também a sua atenção, porquanto participa e influi na apreciação e ajuizamento do espectador (bem informado), independentemente do valor intrínseco do monumento, seja ele de natureza intencional, criado com o propósito preciso de conservar presente e viva, na consciência de gerações futuras, a lembrança de uma ação ou destino (ou a combinação de ambos) ou artístico e histórico. Na equiparação entre valor artístico e valor histórico Riegl, a despeito das distinções, esses valores se associam de tal forma que é difícil separá-los: entendido dessa forma, o ‘monumento artístico’ é, na realidade, um ‘monumento da história da arte’, e o seu valor é menos ‘artístico’ que ‘histórico’. Do que resulta impertinente a distinção entre monumentos artísticos e monumentos históricos, os primeiros incluindo-se nos últimos e com eles se confundindo (pp. 44-46). Mas pergunta em seguida: será verdade que apreciamos somente o valor histórico dos monumentos de arte? Responde: para além do interesse histórico das obras de arte antigas, há outro elemento inerente à sua especificidade artística, concernente à sua concepção, forma e cor. ... há manifesto um valor puramente artístico, independente do lugar ocupado pela obra no desenvolvimento da história. (grifo nosso) Discutindo o primado que prevaleceu entre os artistas desde a Renascença até o século XIX, Riegl coloca em questão a tese do cânone artístico intangível, um ideal artístico objetivo e absoluto, um propósito final em parte inacessível alcançado somente na Antiguidade. Esse privilégio da Antiguidade foi abolido no século XIX. Se desfez. Tudo se iguala, todos os períodos artísticos tiveram suas especificidades. Porém, não se abandonou totalmente a crença no ideal artístico objetivo. Por outro lado, permanece a atração das obras da Antiguidade, tão fortemente quanto as contemporâneas. Riegl explica da seguinte forma: O fato de não apreciarmos somente as obras modernas, mas também a concepção, as formas e cores de obras antigas, que muitas vezes preferimos às modernas, poderia se explicar (independentemente do fator estético sempre presente no interesse histórico) da seguinte forma: mesmo parcialmente, algumas obras de arte antigas respondem ao ‘valor artístico moderno’ (grifo nosso). Tal qual os acontecimentos do passado são estudados pelos historiadores sempre a partir do presente histórico, analisados e reelaborados de forma a apresentar um relato consistente e lógico de maneira a conferir-lhes sentido 7 Resgate – História e Arte III (independentemente da teoria a que se filiam), os monumentos (e as obras de arte) são de forma semelhante vistas pelo espectador contemporâneo, culto ou não. Riegl privilegia, todavia, a capacidade sensitiva, tornando o juízo que faz dos monumentos independentemente dos elementos ou aspectos inerentes enquanto obras de arte, apreciados pelo espectador segundo a sensibilidade moderna. Portanto, conclui: Segundo as concepções modernas (escreve no início do século XX), não há valor de arte absoluto, mas unicamente um valor de arte relativo, atual. Consequentemente, o conceito de ‘valor de arte’ varia segundo o ponto de vista que se adota ... variam de indivíduo a indivíduo e de momento a momento. E a partir dessa constatação chamava a atenção dos responsáveis pela política de preservação dos monumentos: É, pois, condição preliminar e essencial de nossa atribuição esclarecer essa diferença na concepção de valor artístico, porque os princípios diretores de uma política de conservação dela dependem integralmente. Se não existe valor de arte eterno, mas somente valor relativo, moderno, o valor de arte de um monumento não é mais um valor de rememoração, mas um valor atual. (pp 47-48). Tal concepção torna o monumento, nas palavras de Françoise Choay, suporte opaco de valores históricos transitivos e contraditórios, de metas complexas e conflituais 12 e são apreendidos em momento posterior (o da fruição do espectador contemporâneo) ao de sua criação. Segundo essa maneira de ver, parece-me, mais vale a impressão, ou em outras palavras, a avaliação sensitiva dos monumentos do que o conhecimento que podemos obter ou já possuímos sobre eles. Trata-se, portanto, de um valor prático e flutuante, que exige [da parte de quem cuida da preservação dos monumentos] mais atenção [pois] se opõe ao valor histórico de rememoração do passado do monumento. (grifo nosso) A época em que foram criados, e mais especialmente o estilo e suas variantes ou o que chamamos de progressão estilística do período de sua vigência, deixam de ter sentido, pois perdem a razão avaliativa que, todavia, gostamos de reconhecer neles, ou como diz Riegl o valor de arte é excluído do conceito de monumento. Tenho muita dificuldade em entender isso, em aceitar tal proposição, tal ponto de vista. Os objetos de arte são objetos de arte, assim como monumentos são monumentos. Deixar de lado a importância da época, do estilo ou de qualquer outra qualidade artística que possuem me soa estranho. Afinal, o que diferencia o monumento, seja ele qual for, de outro edifício qualquer? Como distinguir um do outro? Se assim ocorre com o artístico, com o histórico não me parece seja tão diferente. A historicidade assim entendida, torna os monumentos lineares, como se todos os que os precedem e os sucedem se resumissem a uma só manifestação, a uma só força propulsora, fossem todos iguais, indistintos, o que a História da Arte e da CHOAY, Françoise - A propósito de culto e de monumentos in RIEGL, Aloïs – O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gêneses. Tradução Elaine R. Peixoto e Albertina Vicentine. Goiânia: Ed. da UCG, 2006. pp 14-15. 12 8 Resgate – História e Arte III Arquitetura jamais aceitou. Cada época é uma época, com suas próprias características, e que as diferenciam umas das outras. Ou não? Maria Carolina Maziviero, analisando o conceito de Kunstwollen - vontade artística ou formativa – operado por Riegl, diz que esse conceito sugere um embate entre a intencionalidade do período da criação da obra [passado] e o que ela desperta no espectador em outro momento histórico [presente], e que este por sua vez é dotado de outra intencionalidade artística.13 A intencionalidade artística existe tanto no período de criação como nos períodos posteriores, ou seja, os da apreciação ou de fruição do monumento. Ambas, porém difeririam não só pela distância que existe entre elas como pela natureza ou substância artística que expressam. Assim, a intencionalidade artística do período de criação e a posterior do período em que é apreciada pelo espectador moderno, estão em permanente tensão – entre presente e passado –, tensão essa de onde resultaram os Valores captados por Riegl. O escopo metodológico riegliano privilegia o entendimento sensitivo que temos na atualidade sobre os monumentos, atribuindo-lhes juízos, ou seja: valores14. A questão da atribuição de valor desloca-se do monumento propriamente dito, do seu conteúdo artístico per se, para a maneira como o apreciamos contemporaneamente. Depende não mais de suas qualidades intrínsecas, mas provém da impressão estética que causa ao espectador. O que, talvez, tenha constituído o germe daquilo que presentemente Hal Foster chama de estética da presença que deixa de sofrer a pressão da arte anterior, onde o caráter presentista sobrepõe-se aos valores artísticos propriamente ditos e até mesmo ao contexto histórico e social de onde provém.15 Dessa forma a questão de os monumentos serem ou não objetivamente dotados de valor, diz Riegl, depende da visão subjetiva de cada espectador(?): o conceito de ‘valor de arte’ varia segundo o ponto de vista que se adota. Para uns a obra de arte possui valor artístico à medida que responde as exigências de uma suposta estética objetiva, para outros, partidários da concepção moderna, o valor de arte de um monumento é mensurado pela maneira como satisfaz as exigências da vontade artística moderna, que não foram, evidente, formuladas claramente e, estritamente falando, não serão jamais, pois variam de indivíduo a indivíduo e de momento a momento. [pp 47-48] Essa segunda maneira é a que Riegl desenvolve para a formulação dos Valores que atribui aos monumentos. Vale observar que, para os efeitos práticos da conservação, Riegl exclui do monumento o valor de arte, que era próprio ou inerente Maziviero, Maria Carolina – Evolução Estética e Linearidade Histórica: O Conceito de Kunstwollen em Alöis Riegl. http://www.educacaografica.inf.br/artigos/evolucao-estetica-e-linearidade-historica-o-conceito-de-kunstwollenem-alois-riegl 13 14 Na Introdução da tradução brasileira, Elane Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentini apresentam uma classificação suscinta dos Valores dos monumentos segundo a teoria de Aloïs Riegl: Valores Histórico e de Antiguidade que por sua vez desdobram-se em Valores de Rememoração e Rememoração Intencional; os Valores de Contemporaneidade em Valor de Uso e Valor de Arte, e este em Valor de Novidade e Valor Relativo. 15 FOSTER, Hal – O complexo arte-arquitetura. São Paulo. Ubu Editora, 2017. Cap. Museus Minimalistas. 9 Resgate – História e Arte III ao monumento na visão tradicional, já para ele ultrapassada e que se fundamentava em uma suposta estética objetiva que a concepção moderna exclui do conceito de monumento: A tarefa de conservação do monumento histórico deve ter isso em conta, porque se trata, para a arte, de um valor prático e flutuante, que exige mais atenção e se opõe ao valor histórico de rememoração do passado do monumento. Portanto, o valor de arte é excluído do conceito de monumento16. Mais adiante, porém, observa que os produtores de obras que nos parecem hoje como monumentos históricos buscavam, essencialmente, satisfazer suas próprias necessidades práticas ou suas exigências de ideal, quer dizer ideal de seus contemporâneos, acrescentando entretanto – o que acho questionável – que aqueles produtores jamais pensaram em legar às gerações futuras os testemunhos de sua atividade artística e cultural (?) para assim concluir: portanto a denominação de ‘monumento’ não pode ser compreendida em sentido objetivo, mas unicamente subjetivo. II À época de Riegl, em razão de tudo o que ocorrera em matéria de Arte e Arquitetura no século XIX, os cânones com as quais eram julgadas anteriormente já tinham perdido significação; daí propor que os monumentos históricos fossem vistos e apreciados na condição em que se apresentam e sob novos enfoques apoiados basicamente dos sentidos da percepção e recepção do espectador no presente. No tempo atual, que não faz muito o chamávamos de pós moderno (talvez sejamos agora que adentramos o século XXI mega modernos), caberia perguntar: como apreciamos os monumentos? Da forma como Riegl propôs no início do século XX? Ou ainda não desatamos os liames que herdamos do passado, das categorias criadas por diferentes pensadores que refletiram e teorizaram acerca da Arte em suas diversas modalidades? Ou, como analisa Hal Foster, sujeitos que estamos às transformações operadas tanto na Arte como na Arquitetura contemporâneas, a importância que a imagem passou a ter para ambas na qualidade de espetáculo, ultrapassados os momentos criativos do pós moderno, do minimalismo que levou o objeto de arte à sua condição arquitetônica e a novas experimentações estéticas, alterando substancialmente a percepção do espectador, com a perda de autonomia do sujeito diante das obras ilusionistas modernas.17 E pergunto ainda: e quanto aos nossos pensadores, os brasileiros que inventaram de salvar e preservar os monumentos nacionais? Em que medida eles ainda estão presentes em nossas reflexões e ajuizamentos quando voltamos nosso olhar para o patrimônio arquitetônico e artístico brasileiro? Muito antes deles 16Riegl, 17 A. op. cit. p. 48. Ver a respeito FOSTER, Hal – Op. Cit. 10 Resgate – História e Arte III começassem a ser analisados pela Academia, sob ótica dos pensadores estrangeiros, o Professor Roberto Schwarz abordava a questão da xenofilia da elite cultural brasileira, para ele um fato, da experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos e, já no início do artigo intitulado Nacional por subtração, citava um de nossos maiores intelectuais, idealizador do órgão federal de preservação: Mário de Andrade, no ‘Lundu do escritor difícil’, chamava de macaco o compatriota que só sabia das coisas do estrangeiro. É interessante lembrar as palavras que então dirigia a seus alunos do Departamento de Letras da Universidade de São Paulo: ... vejamos o trânsito da crítica por impressionismo, historiografia positivista, new criticismo americano, estilística, marxismo, fenomenologia, estruturalismo, pósestruturalismo e agora teorias da recepção. A lista é impressionante e atesta o esforço de atualização e desprovincianização em nossa universidade. Mas é fácil observar que só raramente a passagem de uma escola a outra corresponde, como seria de esperar, ao esgotamento de um projeto; no geral ela se deve ao prestígio americano ou europeu da doutrina seguinte. Resulta a impressão – decepcionante – da mudança sem necessidade interna, e por isso sem proveito. O gosto pela novidade terminológica e doutrinário prevalece sobre o trabalho de conhecimento, e constitui outro exemplo, agora no plano acadêmico, do caráter imitativo de nossa vida cultural. 18 Resta, dizia Schwarz, um sentimento de inadequação. Sim, nem tudo se fez da maneira descrita pelo eminente professor em matéria de crítica ao trabalho realizado pelos técnicos do Serviço do PHAN. Houve trabalhos de valor crítico inegável e com propostas transformadoras, respeitadas até hoje, a começar pelas de Aloísio Magalhães – E Triunfo? A questão dos Bens Culturais no Brasil – onde perguntava: Quais os componentes fundamentais da cultura brasileira? .... será que a nação brasileira pretende desenvolver-se no sentido de se tornar uma nação rica, forte, poderosa, porém uma nação sem caráter? E respondia, asseverando que o verdadeiro processo, o verdadeiro desenvolvimento de uma nação baseia-se em, harmonicamente, dar continuidade àqueles componentes que lhe são próprios, aos indicadores do seu perfil ou da sua fisionomia e, portanto, de sua identidade.19 18 19 SCHWARZ, Roberto – AS IDEIAS FORA DO LUGAR. Penguin & Cia. das Letras. 2014. pp 81-82. Inaugurou-se com Aloísio Magalhães um período de autocrítica e de animadas discussões, polêmicas, conflitivas que resultariam, anos depois, em trabalhos significativos que permitiram desvelar contradições na condução dos trabalhos técnicos de restauração, como o de Antonio Luiz Dias de Andrade – Um Estado completo que pode jamais ter existido – que, a despeito de sua importância nem a Universidade de São Paulo nem o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional propuseram-se a editar; os não menos importantes trabalhos de Maria Cecília Londres Fonseca – O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil e Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural; de Cristiane Souza Gonçalves – RESTAURAÇÃO ARQUITETÔNICA. A experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-1975, trabalhos cujo valor está 11 Resgate – História e Arte III Aloisio Magalhães incitava-nos a conhecer mais profundamente o Brasil. E proclamava: A nossa realidade é riquíssima, ... [mas ainda] desconhecida. ... É essa realidade que precisa ser levantada. É como se o Brasil fosse um espaço imenso, muito rico, e um tapete velho, roçado, um tapete europeu cheio de bolor e poeira tentasse cobrir e abafar esse espaço. É preciso levantar esse tapete, tentar entender o que se passa por baixo.20 E para entender o que se passa por baixo foi e ainda é preciso muito esforço de investigação de modo a desvendar tantas realidades nossas que permanecem ocultas aos nossos próprios olhos. Mas, acrescento, não só a presente; mas aquela que o processo cultural constituiu, de onde provém, ou seja do passado histórico. Pois do ponto de vista patrimonial interessa-nos conhecer também os elementos de natureza imaterial que subjazem sob a aparência atual dos nossos monumentos e das nossas obras de arte que herdamos do passado. Nesse sentido Riegl faz uma ponderação, a meu ver muito interessante (embora um tanto contraditória com a linha de interpretação que adota), mas que tem enorme importância para todos aqueles que valorizam os processos criativos: a obra nos interessa em sua forma original e intacta, tal qual resultou da mão de seus criadores (grifo nosso) – originada da Kunstwollen ou da vontade artística ou formativa inicial, referida por Maziviero. Mas, diante da impossibilidade de apreciar as obras de arte do passado, tal como se apresentavam no momento de criação, sem o desgaste e os infortúnios sofridos ulteriormente, mesmo assim, admite Riegl, desejamos contemplá-las de novo. O que, segundo o pensador vienense, só pode ser alcançado pela imaginação, pela rememoração delas, seja através do pensamento seja pelas palavras, ou ainda, caso existam, através das imagens.21 Assim, embora reconhecesse o desejo natural e humano de reconstituí-las, através dessas faculdades, não mencionou o restauro como meio eficaz para alcança-las. A respeito dessas últimas – as imagens – o historiador Peter Burke nos diz que, face a carência de documentos coevos podemos lançar mão de tudo quanto for possível para recuperar os testemunhos de nosso passado histórico, constituindo as imagens evidências por vezes únicas para tal empreitada22. De fato, e especialmente quando os testemunhos que nos interessariam recuperar sofreram alterações significativas ou simplesmente desapareceram de nossas vistas. exatamente na profundidade com que examinaram as questões analisadas tendo por base a vasta documentação produzida pelo órgão federal de preservação. MAGALHÃES, Aloísio – E TRIUNFO? A questão dos Bens Culturais no Brasil. Nova Fronteira / Fundação Nacional Pró-Memória. RJ. 1985. p 42. 20 21 “No primeiro caso, o valor de rememoração é cedido por outros (os criadores de outrora); no segundo, nós o determinamos”, complementa Riegl. p. 49. 22 BURKE, Peter - Testemunha Ocular O uso de imagens como evidência histórica. Ed. UNESP. 2017. 12 Resgate – História e Arte III É o que pretendemos fazer relativamente a três igrejas de Itu, duas das quais se conservaram razoavelmente e tornaram-se monumentos históricos nacionais. III Para tanto, lançaremos mão primeiramente do testemunho ocular de um artista poliédrico23 ituano, fazendo uso de suas aquarelas como evidência histórica da configuração urbana de Itu da primeira metade do século XIX onde essas igrejas estão representadas. Aquarela de Miguelzinho Dutra (meados do séc. XIX) Observando a aquarela CIDADE DE YTU, de Miguelzinho Dutra, verifica-se que das igrejas construídas no último quartel do século XVIII, duas não haviam completado suas edificações. Ainda por volta de 1840 nem igreja de Nossa Senhora do Carmo nem a franciscana de São Luiz tinham construído suas torres. Existia uma terceira igreja, porém fora do alcance do artista, pois que situada além do espigão que divide a cidade, que não foi possível representar, construída por volta de 1821 pelo Padre Jesuíno do Monte Carmelo, a Igreja de Nossa Senhora do Patrocínio, já ostentaria as suas torres duplas. Desenho da igreja de N. Sra. do Patrocínio/Itu, de Miguelzinho Dutra, extraído de página da Publicação PADRE JESUÍNO DO MONTE CARMELO, SPHAN, MES, RJ, 1945. BARDI, P. M. – MIGUEL DUTRA o poliédrico artista paulista. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. 1981. 23 13 Resgate – História e Arte III Somente as torres das igrejas de Nossa Senhora da Candelária e a da mais antiga de Itu, a de Bom Jesus, são vistas nesse panorama de meados do século XIX. 14 A torre da matriz era recente (1831) e sua edificação pôde ser acompanhada pelos contemporâneos do artista ituano, erguida pelo não menos artista Padre Elias do Monte Carmelo24, que a fez nascer por detrás do pano do frontispício (construído no tempo do Padre João Leite e da benemérita Senhora Maria Francisca Vieyra que o patrocinou25), bela e esguia, encimado por uma cúpula em forma de capacete em cuja extremidade se elevava uma cruz, de maneira que era avistada de qualquer ponto da cidade e os seus sinos ressoavam nos ouvidos de todos os seus habitantes. Momento glorioso do ponto de vista da Arquitetura Religiosa e Tradicional. Concluía-se, por fim, a sua principal igreja, cerca de 50 anos após o início de sua edificação (1780)26; erguia-se a torre composta por elementos distintos porém compatíveis aos do frontispício barroco, mantendo dessa forma configuração artística harmônica e original, alcançando solução plástica de admirável beleza obtida graças a aplicação da pedra de cantaria; beleza que deveria ter sido preservada indefinidamente mas não foi. 24 NARDY FILHO, Francisco - A CIDADE DE YTU Histórico da sua fundação e dos seus principaes monumentos. Escolas Profissionaes Salesianas. 1º volume, 1928, p. 72. Informa o historiador ituano: “Em 1831 o Padre Elias do Monte Carmello fez construir uma torre no centro do frontispício dessa igreja...”. 25 CERQUEIRA, Carlos Gutierrez – Entalhador do retábulo da Matriz revela-se em inventário do mecenas da Itu Colonial in Resgate – História e Arte II: https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXNnYXRlaGlzdG9yaWFlYXJ0ZXxn eDo2YzVlNTEwYmMyYjA4YTY0 26 O corpo do grande edifício foi, de acordo com Oliveira Cesar, construído pelo sorocabano José de Barros Dias que, devido à má qualidade do barro na região, levantou suas paredes piladas de terra de pedregulho. Conduzidas de umas mil braças distante da Villa, de terrenos de sua propriedade, pela quantia de 600$000 rs. tendo sido coberto com telhas que Padre João Leite mandou fazer em seu sitio a um quarto de legoa da Villa ... e para transporta‐las convidou o povo, e com o clero, em forma de romaria, foram ao sitio, voltando cada um com as telhas que podia carregar, até a obra. De então em diante todos os domingos e dias santos o povo repetia essa romaria até concluir a remoção das telhas. (grifo nosso) OLIVEIRA CESAR, Joaquim Leme de ‐ NOTAS HISTÓRICAS DE ITU Revista do Instituto Histórico e Geographico de São Paulo. Vol. XXV. 1927. Resgate – História e Arte III Diria Mário de Andrade a respeito da fachada eclética feita por Ramos de Azevedo no final do século XIX: Se a parte externa desta igreja nada vale, com suas remodelações, nela viveu um Deus faustoso, referindo aos seus altares setecentistas.27 Desse modo e mesmo com as exceções apontadas, a rica e prestigiosa cidade do interior paulista não completara inteiramente os seus principais templos até aquele momento da auspiciosa inauguração da torre da matriz. ∙ Quais seriam exatamente as dificuldades para a construção de torres em Itu uma vez que a riqueza ituana, iniciada com a lavoura da cana de açúcar, se prolongava associando-se à do café? Os grandes senhores de terra e de extensa escravaria religiosamente dividiam-se pelas tradicionais Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco, como de resto ocorria no Brasil afora. Recursos materiais, portanto, não devia ser obstáculo para tal empreendimento, pois muitos fazendeiros tinham casas de morada na cidade, embora seja também conhecida a atração que já exercia a Capital na preferência daqueles mais abastados. Por outro lado, a edificação de igrejas em Itu não diferia das demais do planalto paulista, ou seja, construídas em taipa de pilão; sistema que não impedia que se erguessem torres, muitas delas aliás com altura bastante elevada28. Desse modo, não era propriamente o sistema construtivo a impedir sua construção, pois na Capital desde meados do século XVIII já se associasse a esse antigo sistema construtivo a alvenaria de tijolo e a cantaria de pedra, aplicadas à frontaria dos templos e torres, técnica que se propagou rapidamente pelo planalto, chegando a Itu como vimos quando da construção do frontispício da Matriz em 1780. Mas havia sim um problema que precisou ser superado e que foi documentado pelos franciscanos. Por essa mesma época as igrejas franciscanas entrariam em obra também. Conta-nos Frei Basílio Röwer sobre a reconstrução do Convento. Os freis resolvem demolir o convento porque constatara-se que estavam rachadas as suas paredes por várias partes, ameaçando de tal sorte o demolir-se por si mesmo. A razão daquela circunstância: a terra daquele continente [da região] hé areenta. Tal como na construção da Matriz, era preciso por este motivo conduzir-se diferente terra do outro lugar distante para se levantar a dita nova fábrica. Como alternativa conjecturou-se usar a pedra pois que a pouco espaço fora da dita vila se encontra pedra fácil de 27 Ofício de Mário de Andrade, Assistente Técnico da 6ª Região ao Diretor do Serviço do PHAN, datado de 16 de outubro de 1937, encaminhando “relatório das primeiras pesquisas, realizadas no Estado de S. Paulo, a respeito de monumentos arquitetônicos de valor histórico e artístico, dignos a meu ver, de tombamento federal” in MÁRIO DE ANDRADE: cartas de trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade. MEC.SPHAN pró-memória. RJ. 1981. P. 99. 28 Por exemplo a torre da Carmo de Mogi das Cruzes. 15 Resgate – História e Arte III extrair. Assim deliberam que façam fabricar de novo o sobredito Convento de pedra, e barro no mesmo lugar, que ocupa o velho arruinado29. 16 A impressão que a imagem que Miguelzinho nos deixou é a de que não chegaram a tanto, ou seja, nem destruíram o velho convento nem construíram um novo. Eu diria que o que acabaram fazendo foi uma restauração parcial dele; a configuração primitiva foi mantida (inclusive com o uso da taipa de pilão), e a pedra, ao que parece, aplicada somente nas ombreiras da porta de entrada e nas janelas, introduzindo, portanto, um material novo que já havia sido utilizado tanto na Matriz como na Capela dos carmelitanos, sobre as quais falaremos adiante. A igreja, por sua vez, porque não padece danificação notável, foi mantida, como haviam deliberado. Ela tinha quase um século de existência, erguida que fora em 1692, segundo consta nos livros de História de Itu. Eu ouso dizer, porém, observando mais atentamente a aquarela de Miguelzinho que sofreu sim intervenção, pequena, mas necessária para acompanhar a mudança procedida no convento; substituíram a verga reta da portada e das janelas pela curva, conferindo ao conjunto unidade estética. Na década seguinte, os Irmãos da Ordem Terceira da Penitência recebem dos frades a doação de quarenta braças de terra de cumprido, equinze de largura para edificarem a sua Capella, separada, mas um pouco recuada, ao lado da igreja conventual. A aquarela de Miguelzinho Dutra retrata-as com as configurações que possuíam em 1845, tendo à frente o Cruzeiro que o mulato Mestre Thebas fez em 179330. Por essa imagem pode-se perceber que a determinação tomada pelo Definitório da Província foi cumprida: o convento restaurado enquanto a igreja primitiva, malgrado apresente vergas denunciando influência mineira, permaneceria como testemunho de outra época. Naquele momento a capela funda da Ordem Terceira se desprendeu da 29 ROWER, Frei Basílio O F M. PÁGINAS DE HISTÓRIA FRANCISCANA NO BRASIL. VOZES. Petrópolis. 1941. pp 513-4. CERQUEIRA, Carlos Gutierrez – THEBAS EM ITU in Resgate – História e Arte. https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXNnYXRlaGlzdG9yaWFlYXJ0ZXxn eDo1OWIyMjBkNzI2ZTYyYjYx 30 Resgate – História e Arte III igreja conventual ao ser edificada em separado, com sua frontaria moderna31 voltada para a praça, contrastando com a fachada da igreja conventual, de taipa32, ao mesmo tempo em que dialogava melhor com a pedra lapidada do Cruzeiro. Havia, no entanto, na simplicidade da igreja conventual uma força, uma ancianidade e uma dignidade espiritual e histórica respeitável. Depois da Bom Jesus, primitiva Matriz da Vila de Nossa Senhora da Candelária de Ytu, a igreja de São Luiz de Toloza era a segunda mais antiga na cidade. Cenário de singular significação, presente em Itu por um longo período em que conviveram exemplares arquitetônicos de tempos nem tão distantes e nem tão próximos, mas distintos enquanto expressões artísticas de uma sociedade em transição. E tivesse a igreja conventual permanecido ali ainda por mais cem anos entre as modernidades surgidas naquele tempo, com a degradação natural que sofrem as edificações, e munidos já com os juízos de Alois Riegl, e com a boa vontade e condescendência dos especialistas, nela haveríamos de reconhecer Valor de Antiguidade33. Igrejas franciscanas das Ordens 1ª e 3ª com as suas últimas configurações 31 A capela nova dos Terceiros apresenta solução construtiva encontrada pelos paulistas para atender o gosto que passou a vigorar na última quadra do século, a fachada de alvenaria revestindo a velha taipa e a pedra de cantaria emoldurando portada e janelas, cimalhas, os pináculos sobre os cunhais, o óculo e o gracioso frontão encimado por uma cruz. 32 Funcionou a Ordem durante quase um século numa capela lateral, com arco para a igreja do Convento, A construção da capela começou em 1794, e a igreja foi benta em 1802. ... Os Terceiros de Itu estiveram debaixo da direção dos Religiosos seus fundadores até 1862, ano em que o Convento deixou de ter Guardião... Na capela desta Ordem Terceira foram feitos trabalhos importantes nos anos de 1909 e 19, por iniciativa do então vigário Pe Elisário de Camargo Barros. Mas o contato com os Religiosos a corporação o perdeu e hoje ela não existe mais, como tão pouco a capela com as suas dependências. ROWER – op cit pp 508-9. 33 Assim, vemos o culto do valor de antiguidade trabalhar sua própria perda. Seus defensores, os mais convencidos, concordam plenamente. A ação de decomposição das forças naturais é tão lenta que mesmo os monumentos milenares ainda nos serão conservados por um tempo relativamente longo – tão longo quanto a duração provável desse culto. De outra parte, a criação não cessa de prosseguir: o que é moderno hoje e nos parece como um estado completo, conforme as leis da criação, tornar-se-á pouco a pouco um monumento e virá preencher as brechas necessariamente abertas, ao longo dos anos, pelos agentes naturais no conjunto dos monumentos que nos foram legados. Do ponto de vista do valor de antiguidade, a atividade humana não deve precisamente visar uma conservação eterna dos monumentos criados no passado, mas constantemente buscar a evidenciar o ciclo da criação e destruição; esse objetivo será atingido mesmo que os monumentos existentes atualmente sejam substituídos no futuro. Riegl, Aloïs – O culto Moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Ed. UCG. 2006. p. 74. 17 Resgate – História e Arte III Mas, por essa altura, já não existia mais frade algum nas dependências do convento e a igreja, escreveu Frei Basílio Rower; havia sido assumida pela Irmandade de S. Benedito, que a restaurou às suas expensas em 1898, e o convento, transformado pouco depois (1907) em depósito de algodão, destruído por um incêndio, de que dizem que foi proposital e que reduziu o Convento a uma ruína. IV O uso de imagens face a carência de documentos, todavia, não desvencilha facilmente a pesquisa histórica das adversidades da tarefa. Quem já se debruçou sobre documentos da época de construção de uma igreja, por mais insuficientes que sejam, sabe que o tempo de criação delas foi geralmente longo; estendia-se por 50, 60 ou mais anos, perfilando em sua construção e ornamentação artífices e artistas, por vezes de gerações distintas, perpassando por nuances estilísticos distintos.34 Um bom exemplo é a igreja Matriz de Itu. Aqui as datas são imprecisas, apoiadas na literatura histórica da cidade cujos historiadores, a despeito do empenho com que se dedicaram a narrar os acontecimentos, encontraram muitas dificuldades em documentar seus estudos. Mesmo assim, consagrou-se o ano de 1780 como o de sua inauguração. As obras demandaram participação da população não só em trabalho efetivo, com o carregamento de terra boa para taipar, transportada de lugar relativamente distante, afora a imposição de doações estabelecidas pela Câmara que geraram querelas judiciais e envolvimento do Governo da Capitania.35 Houve também generosas contribuições de gente rica, entre as quais destacava-se a Senhora Maria Francisca Vyeira, que contribuiu com vultosas somas destinadas à fatura das obras artísticas do retábulo mor (1779-1783) e da pintura do forro da capela mor (painel) e dos elementos de talha da capela-mor, telas das Vidas de Cristo e de Nossa Senhora, pinturas azulejadas do Velho Testamento, e douramento e pintura dos altares colaterais ao arco cruzeiro inclusive (1786-1791 aprox.), bem como da construção do frontispício da igreja (data ainda ignorada) – trabalhos que, segundo a evolução apresentada no início deste texto, marcam grosso modo o início e o final de sua edificação da igreja, exceto a sua torre que só será construída em 1831, pelo padre Elias do Monte Carmelo, encerrando as obras em definitivo e com ela o ciclo ou o tempo de criação artística em sua totalidade histórica. É o caso da Matriz de Itanhaém que conheço relativamente bem – História de um monumento: Igreja Matriz de Itanhaém in Resgate – História e Arte https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXNnYXRlaGlzdG9yaWFlYXJ0ZXxn eDozMmJlODFhZmNiMDUzYWM e da “Capela de Santa Teresa da Venerável Ordem Terceira do Carmo da Cidade de São Paulo” in Processo de Tombamento IPHAN N. 1.176-T-85. 34 CERQUEIRA, Carlos Gutierrez – José Patrício da Silva Manso in Resgate – História e Arte II https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXNnYXRlaGlzdG9yaWFlYXJ0ZXxn eDo0ZjM2M2Q1MzE5Mzg0OTNm 35 18 Resgate – História e Arte III 19 Foto antiga da Matriz, extraída do Almanach histórico, biographico e indicativo da Comarca de Ytú para o anno de 1910. De Francellino Cintra, Ytu: Typ. São José, 1909 – Arquivo do Museu da Convenção Republicana de Itu. A ornamentação interior da Matriz, iniciada com a fatura do retábulo mor (1780-1783), se estendeu por cerca 40 anos pelo que se nos aparenta as configurações dos altares da nave, cuja policromia primitiva reapareceu pelas mãos habilidosas dos restauradores da equipe do restaurador Julio Moraes que firmou opinião de que os trabalhos artísticos realizados à época foi de tal vulto que os principais artífices então contratados pelo Padre João Leite (Bartholomeu Teixeira e José Patrício da Silva Manso) se viram obrigados a valerem-se de auxiliares – oficiais e aprendizes – para execução não somente de serviços preliminares (aparelhamento da madeira, preparação de pranchas, telas e tintas) como ainda do delineamento dos elementos envoltórios, cênicos ou ornamentais de mais fácil execução, mas sob suas estritas orientações, reservando para si o seu acabamento final, afora a execução dos elementos centrais, em cujas faturas os mestres entalhador e pintor conferiam às obras, de acordo com os cânones vigentes e segundo os seus estilos próprios, a qualidade artística almejada.36 Padre João, com o auxílio do bispo Dom Manuel da Ressurreição, reuniu em Itu o que havia de melhor em matéria de profissionais que estavam ao seu alcance contratar. A começar pelo retábulo mor desde sempre admirado37, mesmo tendo permanecida oculta a sua majestosa policromia que agora se revela aos nossos olhos depois de mais de dois séculos de sua criação por José Patrício da Silva Manso – cenário resgatado pelo restauro recém efetuado. Embora deva dizer que quando contemplo a capela mor da matriz da Candelária não creio estar relacionando-a a Arte do meu tempo ou que o gosto estético contemporâneo de alguma forma me 36 CERQUEIRA, Carlos Gutierrez – ENTALHADOR DO RETÁBULO DA MATRIZ REVELA-SE EM INVENTÁRIO DO MECENAS DA ITU COLONIAL in CADERNOS DO PATRIMÔNIO DE ITU ANO 1 – Nº 1 – 2015. p 19. 37 Tive em companhia do Professor Mateus Rosada recentemente, num encontro próximo ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, onde tomamos um cafezinho e tivemos uma boa conversa sobre inumeráveis aspectos da Arte retabular paulista, pela qual fiquei sabendo que Bartholomeu Teixeira Guimarães permaneceu em Itu e veio a morrer somente em 1806 (dado que obteve de seu inventário que descobriu). Tal informação reforça nossa convicção de que Bartholomeu continuou a trabalhar nas obras de entalhe da Matriz, o que robustece a hipótese de que os altares colaterais são obras de sua lavra e não de entalhares influenciados por ele. Resgate – História e Arte III condiciona a aprecia-la de um modo igual ou semelhante à de qualquer outro espectador contemporâneo. Creio que, pelo contrário, estou a apreciar um conjunto artístico do seu tempo, de final do século XVIII, com as características que apresenta e que o definem como expressão do estilo Barroco. Mas, confesso, mesmo não sendo religioso, desejaria saber ler nas formas artísticas que as configuram, não somente o que as definem estilisticamente, mas alcançar as significações espirituais que continham, de modo a penetrar no espírito daquele tempo para assim melhor compreender as motivações de seus criadores. Vale observar também que o quadro cultural atual não é o mesmo de Riegl, o do final do século XIX e começo do XX. Hoje contemplo e admiro esse retábulo mor enquanto obra artística sim, como objeto de arte, sinto-a e me comovo com suas belas formas, mesmo ciente de que não alcanço plenamente sua significação religiosa, e percebo também que essa significação possa ter se alterado até para pessoas muito religiosas. Mas me é impossível separá-la de seu próprio tempo, pois ela já se apresenta à mim como obra distinta das do meu tempo que, aliás, foi incapaz de conservá-la adequadamente – pois já não contava mais com artistas com destreza e conhecimento para tanto – e a cobriu de qualquer modo, com as tintas e profissionais que serviam somente para serviços comuns de pintura até que chegasse o momento atual no qual reunimos condições para restaurá-la. E o que mais me satisfaz e me alegra é poder observa-la num estado bem próximo ao momento em que foi criada pelos artistas mencionados e revive-la em sua esplendorosa expressão barroca do final do século XVIII. Vivas à restauração! E foi durante os trabalhos de restauração artística da Matriz que fomos surpreendidos com duas importantes descobertas. O historiador e maestro ituano Luís Roberto de Francisco revela ao restaurador Julio Moraes que vira uns pedaços de tábuas utilizados para confeccionar a escada de acesso à torre que continham pinturas que pareciam antigas e que logo reconheceríamos traços que apontam autoria de Jesuíno. Infelizmente, tratam-se de fragmentos apenas de uma ou duas pinturas parietais que, supõe Julio, figurassem na entrada da igreja debaixo do Coro. Esses fragmentos estão expostos atualmente no Museu de Arte Sacra de São Paulo, mas devem retornar ao Museu Padre Jesuíno do Monte Carmelo de Itu. Mas não foi só. Um inesperado e audacioso pretendente a artista se revelou por debaixo das telas que ornam a capela mor. Matias Teixeira da Silva assinou e datou uns desenhos que lá fez antes da colocação das telas pintadas por José Patrício da Silva Manso e Jesuíno Francisco de Paula Gusmão. A data – 1788 – se prestou a confirmar o que já era de nosso conhecimento, ou seja, de que essas telas assim como o painel do forro desta mesma capela mor não foram pintadas entre 1780 e 1784 como havia 20 Resgate – História e Arte III suposto Mário de Andrade no estudo que realizou para o SPHAN em 1945.38 Isso veio a se somar a outra descoberta muito importante, o contrato firmado pelo Mestre Pintor José Patrício da Silva Manso em 28 de novembro de 1786 no qual se comprometia a realizar o douramento e pintura do retábulo mor e executar o mencionado painel. V Dava-se início à revisão do estudo de Mário de Andrade. Trabalho, todavia, que não é fácil enfrentar, pois, especialmente no que diz respeito a análise das pinturas, exigirá igual competência de quem se propor a realiza-lo. O método de Mário de Andrade de indagar a obra artística para perscrutar o seu criador e assim entender (explicar) tanto a obra como o artista, tem algo a ver com as premissas que, como supus acima, orientavam os estudos de Riegl; embora o escritor modernista, ao expor suas ideias a respeito, refira-se à importância dos ingleses para uma melhor apreciação estética da obra de arte39 – que pressuponho seja a obra de Edmund Burke - Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo – em contrapartida às ideias do também austríaco Sigmund Freud, cuja contribuição para a análise das obras literárias e artísticas contudo considerava menor. Mas, a despeito dessa maneira de ver e sentir as obras de arte, os monumentos, e que em minha opinião o aproxima a Riegl, Mário atingia maior profundidade em suas análises, mais penetrantes no plano psicológico, e respeitava as categorizações produzidas pela História da Arte, com as quais operava suas cativantes interpretações, afora o fato mais importante de eleger e se impor tarefa mais ambiciosa, pois no Brasil, ao contrário do Velho Continente, conhecia-se relativamente pouco o nosso patrimônio e era preciso ainda descobri-lo, identifica-lo, salva-lo do esquecimento e da destruição. Esse propósito, uma vez criadas as condições nas décadas de 1920 e 1930, ao associar-se a um grupo de intelectuais e arquitetos modernistas, resolveu recupera-lo também, e restaura-lo, missão que se efetivou com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1937. Herdamos tal propósito e os frutos dessa ação pioneira que hoje constitui o patrimônio histórico e artístico brasileiro. Mas muitas coisas haviam se perdido, ou restavam alteradas ou mutiladas pela ação do tempo, pelo descaso ou pela atração da novidade que invariavelmente condena o antigo ao esquecimento e à destruição. Mesmo assim foram preservadas, e algumas colocadas sob a proteção do Decreto-lei n. 25. Outras, por razões bastante conhecidas e hoje criticadas, desqualificadas então. ANDRADE, Mário de – PADRE JESUÍNO DO MONTE CARMELO. Publicação N. 14 do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Min. de Educação e Saúde. Rio de Janeiro. 1945. 38 39 Veja a respeito artigo de Lourival Gomes Machado - Mario de Andrade, crítico de arte in HABITAT Revista de arquitetura e arte no Brasil. n. 21. Mar/Abril 1955) e o meu artigo Os documentos que Mário de Andrade não viu https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXNnYXRlaGlzdG9yaWFlYXJ0ZXxn eDoxMWNjNzQyOGZjM2Q1NTZj 21 Resgate – História e Arte III Penso que é tempo de reavalia-las. Entender as suas desventuras históricas e tentar aprecia-las de outro modo, com outro olhar, mais generoso, e, quem sabe, se descobrirmos as razões de suas alterações ou mesmo mutilações, proceder a necessária e justificada restauração. Mas, mesmo assim, um número significativo delas se arruinaram completamente e simplesmente deixaram de existir, como as igrejas franciscanas de Itu. Essas nos interessam ainda, pois como me escreveu recentemente o Professor Jorge Coli: a história da arte também é feita de obras ausentes! 40 VI Nem sempre encontramos harmonia e beleza artística no interior de nossas igrejas como a que se preservou na Matriz de Itu. Em algumas, ao contrário, percebemos soluções estilísticas conflitantes, que à primeira vista desagradam o espectador apenas iniciado em História da Arte como eu. É o caso de igrejas cuja construção teve início no final do século XVIII mas se estendeu até meados do XIX ou mais e terminaram por formar uma decoração interior variada, com estilos que por vezes não dialogam bem entre si, e onde encontram-se altares laterais rococós, neoclássicos e até ecléticos perfilados ao longo da nave. Muito comum também é a substituição das imagens dos santos que figuravam antes por outros de veneração recente. Há também os casos de intervenções arbitrárias, produto do decaimento cultural e ético dos responsáveis41. Mesmo assim, a despeito das diferenças notadas mesmo pelo espectador comum, o quadro geral pode lhe causar boa impressão, reconhecer certo jogo artístico agregador, de modo que se não gosta, aceita, até por desconhecer os acontecimentos que conduziram a essa situação, debitando à pouca sensibilidade de quem os mandou fazer. A explicação, todavia, mesmo quando possível de descobrir, não é fácil de ser compreendida pelo espectador pois diz respeito a períodos, por vezes longos de dificuldades, que impossibilitavam a conservação da igreja e de seu acervo. Períodos que se caracterizaram também pelo declínio das profissões artísticas, afetando a qualidade dos serviços e produtos do trabalho, e, por decorrência, da manutenção dos altares, imagens e pinturas sacras, as quais, por essas razões, sofreram maquilagens que, ao contrário da pretensão e boa intensão, só fizeram desaparecer a tessitura original do tempo de sua criação – perdendo portanto valor artístico. E-mail de 18 de dezembro de 2019 comentando o artigo Anotações acerca do “Papel de obrigação” do Entalhador Jozé Fernandez de Oliveira (1793). https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXNnYXRlaGlzdG9yaWFlYXJ0ZXxn eDo0YTA4ZTE4ZWM1ZDFjNzI1 40 41 Como ocorreu na Matriz de Itanhaém em 1933. O pároco de plantão resolveu que o antigo retábulo era bem inadequado à Matriz da velha e sempre gloriosa Itanhaém e o substituiu por um belíssimo altar de estilo colonial para, por fim, reconhecer que ficara bastante em desacordo com a Capella Mor.” CERQUEIRA, Carlos Gutierrez – História de um Monumento. Igreja Matriz de Itanhaém. https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXNnYXRlaGlzdG9yaWFlYXJ0ZXxn eDo0YzVlYWE2MmZhZWRmNzQ5 22 Resgate – História e Arte III Diante de casos como esses, que se contam às centenas, resisto admitir a posição que vejo cada vez mais adotada de que devemos nos curvar à ditadura dos historicistas, como se as obras de arte fossem culpadas das atrocidades que perpetraram contra elas. Atrocidades que dizem ser adições de sua história, como se fosse destino sofre-las. Desculpe, mas não há nada de natural, nem sobrenatural, nesse processo.42 Quando Cesare Brandi fala em lacunas e adições, e menciona as ocorridas em Arquitetura, considera legítima a recomposição quando ligada apenas à salvaguarda do monumento desde que o ambiente onde foi criado, natural ou monumental não tenha sido alterado de modo profundo nos seus dados espaciais e quando os elementos desaparecidos, com cuja supressão se veio a alterar a espacialidade do ambiente originário, sejam em monumentos ou não.43 Mas há que se distinguir, penso eu, adição de modificação, o que nem sempre é compreendido pelos espectadores. Pois adição em Arquitetura pode significar elemento que se fez necessário construir em razão de novas necessidades que precisavam ser atendidas, sejam por novas imposições programáticas que alteram antigas regras ou antigos rituais (caso das corporações religiosas que demandavam concessão de espaços para altares ou capelas fundas), e, posteriormente, outras de ordem pública (proibição de sepultamentos em igrejas a partir da obrigatoriedade de cemitérios em áreas públicas), que ao se incorporarem quebram o padrão original ou a ele se integram. Assim a adição pode dar uma configuração algo diversa ao edifício – o que, na visão riegliana, invariavelmente acarretaria perda de seu Valor Histórico; ou, ao contrário, excepcionalmente, ganho quando produz efeito visual favorável – é o Valor de Novidade, apreciado à medida em que dá origem a nova unidade estilística, que vem de encontro à intencionalidade artística de quem a produziu e de quem a usufrui contemporaneamente, nós – os espectadores.44 Mas, notem bem, essas adições se distinguem das modificações na medida em que essas últimas são em geral efetuadas sem esses fundamentos, executadas no invólucro do monumento, nas paredes exteriores, e mais especificamente nas fachadas, as preferidas pelos que se deixam atrair pelas novidades estilísticas em moda, geralmente justificadas em nome da modernização, e, na maioria das vezes, sem alterar substancialmente o espaço arquitetônico interior. O que me parece constituir algo muito diverso do que Riegl tinha diante de si; os monumentos austríacos sob a sua responsabilidade apresentavam-se em estado de conservação muito diversa e melhor daquele que observávamos entre nós. De modo que, do ponto 42 Natural é pátina que com o passar do tempo recobre as pinturas e da mesma forma o limo que cobre as paredes de pedra de um monumento antigo. Aparentemente natural, mas que não é, é a poeira de minério de ferro que ataca os profetas de Aleijadinho e que a Igreja e parte da população de Congonhas são indiferentes às medidas protetivas já aconselhadas pelos órgãos de preservação. 43 BRANDI, Cesare – TEORIA DA RESTAURAÇÃO. Cotia. SP. Ateliê Editorial, 2019. 3. Princípios para a Restauração dos Monumentos pp. 135-6. 44 Veja na página 8 deste texto o Conceito de Kunstwollen em Alöis Riegl, conf. Maria Carolina Maziviero. 23 Resgate – História e Arte III de vista de sua conservação, o tratamento adequado aos monumentos podia simplesmente ignorar as destruições passadas, imputáveis aos agentes naturais as quais, não podendo ser anuladas, não devem também ser reparadas, ou seja, restauradas. Daí Riegl sentenciar pela conservação dos monumentos no seu estado presente, protegendo-os apenas das futuras ameaças dos agentes naturais e do próprio homem. A preservação se faz para garantir sua existência futura, principalmente, advogava. O propósito de Riegl, me parece, era nos auxiliar a apreciar os monumentos mediante juízos ou concepções de ordem fenomenológica (portanto não formalistas da Arte, isto é, independentemente de estilo, escola e ou outras formas de categorizar e classificar as obras de arte) e orientar-nos a trata-los adequadamente, visando sua permanência para as futuras gerações. 45 Arte e Arquitetura tornam-se lineares na visão riegliana, pois dissolvidas historicamente das categorizações que as definiam desde sua origem. (Conf. Maziviero. Vide Nota 13). Assim, é possível reconhecer que os valores rieglianos não desconsideravam a artisticidade 46 do monumento, nem a do momento de sua criação nem na atualidade como se apresenta; Riegl não a nega, portanto, em momento nem em estado algum. O que faz é considera-la como expressão de tudo quanto nela ocorreu e representou em seu percurso temporal, histórico, e os diferentes significados que obteve em âmbito cultural, ou como disse Françoise Choay, repito, enquanto suporte opaco de valores históricos transitivos e contraditórios. Assim, o que era essencial para a categorização do monumento, foi posto de lado, deixou de ser relevante, pois as qualidades que lhe seriam inerentes deixam de existir na modernidade da passagem do século XIX para o XX, assim como deixariam de ser importantes para a sua preservação caso fossem os valores rieglianos adotados universalmente. Arte e a Arquitetura dos períodos anteriores seriam, pois, levadas de roldão na progressão turbulenta da História; não importando mais as categorizações 45 Tais categorizações não estariam ainda ao alcance da massa da população, mas restritas aos historiadores, aos homens cultos, que tem prazer em apreciar esteticamente um monumento, mediante a satisfação experimentada em classificar o monumento sob um conceito estilístico conhecido, e poder denomina-lo antigo, gótico ou barroco. O conhecimento histórico permanece, assim, para eles uma fonte de satisfação estética, simultânea e conjuntamente ao sentimento do valor de antiguidade. Essa satisfação não é imediata (quer dizer, artística), mas, ao contrário, reflexiva e científica, que pressupõe conhecimentos em história da arte (Op. Cit. p. 79) o que deixa transparecer uma preocupação de Riegl em voltar-se primeiramente ao cidadão, ao espectador comum, não ilustrado e que caracterizaria uma visão socializante, diria mesmo democrática, enquanto política de preservação que pretendia desenvolver. Tal preocupação me faz lembrar o propósito de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura de São Paulo, promovendo programas de socialização da leitura, de realização de peças teatrais populares, de promoção de conferências sobre a música popular, o folclore, etc., experimentações pioneiras no Brasil que tinham o propósito de levar a Cultura ao povo, educa-lo para saber identificar-se e amar os produtos e as manifestações artísticas brasileiras. 46 A noção de artisticidade devemos a Cesare Brandi e trata-se da instância estética da obra de arte: Como produto da atividade humana, a obra de arte coloca, com efeito, uma dúplice instância: a instância estética que corresponde ao fato basilar da artisticidade pela qual a obra de arte é obra de arte; [e] a instância histórica que lhe compete como produto humano realizado em um certo tempo e lugar e que em certo tempo e lugar se encontra. Op. Cit. pp. 29-30. Essa noção se aproxima, num primeiro momento, ao conceito rigliano da Kunstwollen ou da vontade artística ou formativa já mencionado. 24 Resgate – História e Arte III que receberam desde a sua criação até o estado presente, o percurso em que ocorreram fenômenos de natureza tanto física como cultural, carregadas sim de significações e ressignificações que todavia cedem lugar à apreciação supostamente única e derradeira que é a moderna. Pois, segundo Riegl, todos os monumentos tem Valor Histórico; porém nem todos tem Valor de Arte, pois este valor relaciona-se a uma concepção dialética aparentemente próxima à de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, submetendo a Arte ou a artisticidade a algo similar à supremacia da Ideia hegeliana, como manifestação semelhante ao do Pensamento Puro ou do Espírito no devir histórico. Assim ao menos nos parece ser até certo ponto a Kunstwollen, conceito que define a vontade artística, como força de uma entidade espiritual que orienta a criação artística originária bem como a apreciação estética moderna, a despeito de admitir que a apreciação pode variar de indivíduo a indivíduo. Mas vale observar que a dialética hegeliana pressupõe um processo evolutivo, de aprimoramento, de concretização da Ideia e da Arte como expressão do Espírito, portanto, neste caso, de elevação qualitativa da Arte, especialmente da Arte Religiosa47, o que me parece distinguir-se bastante da dialética riegliana. E, acrescento, nada tem a ver com o historicismo ultimamente presente entre nós na área da preservação. Riegl, desse modo, inverte e subverte as concepções anteriores sobre o Valor de Arte dos monumentos, submetendo-as à vontade artística moderna consubstanciada no olhar do espectador hodierno. Novamente, as qualidades inerentes aos objetos artísticos, sua expressão artística própria, seu estilo, e (invertendo) mesmo as aspirações e concepções artísticas do tempo em que foram criados, deixam de servir ao observador, são abandonadas enquanto critérios (objetivos) de ajuizamento, à medida em que o juízo que sobre eles fazemos tem como parâmetro válido apenas a vontade artística moderna. Esse enfoque filia-se em continuação à linha de interpretação de Immanuel Kant sobre a Estética, baseada na “percepção” e no “sentimento” em relação à beleza do objeto de arte, à sensação de agrado ou desagrado, ou seja, pelo gosto ou prazer que a obra de arte, o monumento, proporciona ao observador. Esse, por sua vez, emite um juízo que não é apenas individual, mas apoiado no senso comum48 - o que, em Aloïs Riegl evoluiria para a vontade artística (Kunstwollen). Ver a respeito Hegel, G. W. F. – ESTÉTICA Textos Seletos. Tradução e Organização: Cláudio J. A. Rodrigues Coleção Fundamentos da Filosofia. Icone editora. S. Paulo. 2012. 47 Diz Osborne: “O argumento de Kant é fenomenológico. Chama a atenção para certos elementos do nosso conceito de beleza, essenciais à linguagem que usamos, e nos mostra que eles pertencem à essência do conceito. Os juízos estéticos são ‘singulares’. Afirmam a beleza deste ou daquele objeto particular como objeto único e não como membro de uma classe. ... São expressões de uma intuição direta e imediata. ... Quase todos, embora nem todos, os filósofos modernos reputaram essa análise fenomenológica penetrante e substancialmente correta” E cita palavras do próprio Kant: “Em todos os juízos por meio dos quais classificamos de bela alguma coisa não toleramos que alguém sustente opinião diversa e, ao assumirmos essa posição, não baseamos o nosso juízo em conceitos, mas apenas em nossos sentimentos. Baseamo-lo, portanto, no sentimento, não como sentimento privado, mas como senso comum.” ... “O juízo do gosto, portanto, depende da nossa pressuposição da existência de um senso comum. Só na pressuposição, repito, da existência do senso comum, somos capazes de formular um juízo do gosto.” 48 25 Resgate – História e Arte III Riegl traduz esse ajuizamento dos monumentos em termos de Valor de contemporaneidade, exemplificando com o ocorrido à época do Renascimento: um grande povo se apropriou das realizações de gerações há muito desaparecidas e considerou-as como obras de seus pretensos ancestrais como parte de sua própria atividade criadora. Assim, o passado adquiriu um valor de contemporaneidade para o olhar da vida e da criação modernas.49 Não deve passar desapercebida uma certa semelhança entre a maneira como Riegl interpreta os acontecimentos da Renascença (com a Arte e Arquitetura da Antiguidade recriadas pelos artistas e arquitetos italianos como parte de sua própria atividade criadora) com os acontecimentos do período vividos por ele na passagem do século XIX ao XX, quando o mundo ocidental experimentava os estilos históricos, movimento que compreendia a adoção de variações estilísticas compreendidas grosso modo sob a denominação ecletismo, e que constituía o panorama cultural que correspondia a aspiração da vontade artística moderna, embora ele próprio refutasse tal semelhança: ... com toda evidência, a concepção de valor de rememoração segundo os italianos da Renascença, não corresponde de forma alguma à nossa do começo do século XX (grifo nosso), apontando duas diferenças: a limitação patriótica da nova atitude frente à arte dos pretensos ancestrais bem como entendesse que a percepção do valor de antiguidade não era ainda reconhecido, alegando tratar-se apenas de um pressentimento confuso – o que não me parece corresponder ao que aprendemos com os historiadores da Renascença italiana.50 Todavia, trata-se de aspecto que, a meu ver, interessa apontar, senão para esclarecer os incautos que confundem o termo moderno utilizado por Riegl com os estilos que vieram depois de formular sua teoria e que buscaram um novo estilo que melhor expressasse a vida moderna, iniciado com a Art Déco e que alcançaria sua versão mais acabada na arquitetura Modernista51. OSBORNE, Harold – ESTÉTICA E TEORIA DA ARTE. Uma introdução histórica. Cultrix. EDUSP SP 1974. 7 A CRÍTICA DO JUÍZO DE KANT. pp. 170-2. 49 Riegl, op. cit p. 54. 50 Diz Cássio da Silva Fernandes em seu artigo Biografia e autobiografia em A Civilização do Renascimento de Jacob Burckhardt: “ ... o problema da passagem entre Idade Média e Renascimento continha ... um elemento fundamental: a descoberto do antigo. Em sua interpretação, desde o século XIV a Antiguidade greco-romana exercia uma ação vigorosa sobre a vida da Itália, funcionando como base e como origem da cultura, como meta e como ideal de existência. Os italianos contavam com a facilidade em compreender a língua latina e com a intensa convivência com a massa de recordações e de monumentos antigos que sobreviviam concreta e potentemente em seu meio. ... Assim, mais que um ressurgimento da Antiguidade, no sentido de uma imitação ou de uma compilação feita em fragmentos, Burckhardt observou na Itália, a partir do século XIV, uma compenetração entre um novo espírito e sua ligação com uma memória antiga. Um “renascimento verdadeiro” ... capaz de compreender em profundidade os escritos antigos, capaz de imitar as construções da Antiguidade, porém, sem deixar de imputar a ambos os elementos próprios da vida contemporânea. Nesse caso, portanto, a mudança estrutural que caracterizava a nova época continha uma forte e consciente ligação com um passado histórico. Era, pelos próprios homens da época, considerada um ‘Rinascimento’.” file:///C:/Users/carlos/AppData/Local/Temp/2741-5585-1-PB.pdf pág. 158. 51 Se bem compreendemos o pensamento de Aloïs Riegl, essa progressão histórica não foi a prevista por ele. Acreditava, ao contrário, que o desenvolvimento do Valor Histórico acentuaria a importância do Valor de Antiguidade: “O valor histórico, indissociavelmente ligado ao fato individual, devia transformar-se progressivamente 26 Resgate – História e Arte III Por outro lado, é possível reconhecer que há sim certa correspondência de nossa percepção estética em relação aos monumentos do passado; relação essa que Riegl atribui ao valor de contemporaneidade desses mesmos monumentos. Claro, nossa antiguidade, frente à dos italianos ou a de qualquer outro povo da Eurásia, não existe. Nossa antiguidade é a dos povos nativos da América pré-Colombiana; mas, só recentemente, a Arqueologia amazônica começou a desvenda-la numa escala satisfatória, para regozijo nosso. Mas no início do século XX identificamos Ouro Preto, a exaltamos e a elegemos Monumento Nacional, cujo patrimônio arquitetônico e urbanístico não era tão antigo assim, mesmo se comparado ao de outras cidades do segundo século da colonização. Razão talvez porque ao invés de falarmos antigo preferimos falar colonial; se bem que com o patrimônio religioso – Arquitetura e Arte integradas – não tivemos problema de chama-lo Barroco compreendendo grosso modo o que entre nós remanesceu dos séculos XVII e XVIII/início do XIX. E curiosamente encontramos outro termo para servir de liame entre o colonial e o moderno, o termo tradicional, utilizado por muitas pessoas e com vários sentidos, que, todavia, funcionava e ainda funciona bem como sinônimo de transmissão, de herança, de conjunto de valores e de experiências vividas no passado, recuperadas e revividas e cultuadas no presente. Esse o olhar nosso; e foi também o dos espectadores brasileiros de cem anos atrás diante do patrimônio que começávamos a reconhecer e valorar. No projeto original de Mário de Andrade tudo isso, todo esse patrimônio, foi tratado indistintamente como Artístico.52 E sua identificação realizada sob o ponto de vista de Valor Histórico e/ou Artístico, o que de certo modo correspondia à teoria riegliana dos monumentos, distinguindo-os e ao mesmo os associando. Da mesma forma corresponderiam aos ajuizamentos que faria posteriormente Cesare Brandi, em 1963, porém, superando a tensão dialética riegliana entre passado e presente na obra de arte, através da restauração, ao afirmar: O período intermediário entre o tempo em que a obra foi criada e esse presente histórico, que de modo contínuo se desloca para frente, será constituído de outros tantos presentes históricos que se tornaram passados, mas de cujo trânsito a obra poderá ter conservado os traços. Mas também em relação ao lugar onde a obra foi criada ou para onde foi destinada e aquele em que está no momento da nova recepção na consciência, poderão ter ficado traços no próprio âmago da obra. Ora, a instância histórica refere-se não apenas à primeira historicidade, mas também à segunda. A contemporização entre as duas instâncias representa a dialética da restauração, exatamente como momento metodológico do reconhecimento da obra de arte como tal.53 em um valor de desenvolvimento, para o qual o individual torna-se indiferente. Esse valor de desenvolvimento é precisamente o valor de antiguidade tal qual foi apresentado. É, portanto, o produto lógico do valor histórico, que o precede de quatro séculos. Sem o precedente do valor histórico, o valor de antiguidade não teria surgido. Se o século XIX foi aquele do valor histórico, o século XX parece ser aquele do valor de antiguidade.” p 59. 52 Anteprojeto de Criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional in MÁRIO DE ANDRADE cartas de trabalho. 53 Ibem p 33. 27 Resgate – História e Arte III VII Dizem: a última impressão é a que fica. Acredito, pois a primeira ficou no passado! São passados mais de cem anos da publicação d’O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Considerando tudo por que passou a Humanidade no século XX54 há que se perguntar se permanecem válidos os Valores rieglianos para os dias atuais. A questão, claro, se coloca igualmente para todas as teorias que tem por objeto o estudo, a apreciação e a preservação dos monumentos históricos e artísticos, inclusive as práticas restaurativas que se veem hoje tolhidas entre nós em parte pelo respeito exagerado, quase catequético, às recomendações das Cartas, e a uma leitura limitada, cartilhesca diria mesmo, dos teóricos estrangeiros, o que resulta no desconhecimento do real papel do restauro na preservação do patrimônio artístico e arquitetônico que beira ao preconceito, já difícil de dissimular. Ora, o restauro é um procedimento indispensável à preservação. Mas à preservação do que? Do que está já posto? Do que presentemente estamos vendo? E o que estamos vendo, que valor ou que valores damos a ele ou nele reconhecemos? Tá, ele existe há bom tempo, 50, 100, 150, 200 ou mais anos entre nós. Tem valor histórico portanto, pois tudo é histórico. Mas o que ele é, além de histórico? É uma obra feita pelo homem. Essa obra como a qualificamos? Bonita, feia, mal feita, rudimentar, grosseira ou bem concebida, bem delineada, etc. Só? Com ou sem tais características ela nos comunica algo além da sua própria história. Ela nos diz algo sobre si mesma. Enquanto portadora de qualidades, que comumente chamamos artísticas, remetem a formas que vigeram num determinado momento e que caracterizaram uma ou mais maneiras do fazer artístico, que chamamos de estilo, e, mais ainda, nos remete ao seu criador, ao artista. Que artista? – logo perguntamos. A obra traz indícios, traços no dizer de Brandi, de ser antiga. Decorreu muito tempo, e a obra (não importa qual seja, uma cadeira, mesa ou baú, imagem, oratório ou pintura, uma casa ou capela) além do desgaste natural, apresenta-se, todavia imperfeita, faltam algumas coisas, outras lhe foram acrescentadas. Mesmo assim, ela nos impressiona e provoca nossa curiosidade. Queremos conhece-la melhor. Abrem-se duas frentes de investigação, ambas demoradas e custosas: a pesquisa bibliográfica e documental e, por que não, a prospecção da obra, que tem como propósito maior identificar seu conteúdo artístico, porém invisível e que precisa ser desvelado, operação que deve ser realizada par a par às medidas de proteção da obra que culminarão na sua identificação, que lastreará as ações de valoração da obra, sua 54 As duas grandes guerras, a destruição das cidades europeias e japonesas, a Guerra Fria, os conflitos do Vietnã, as guerras árabe-israelense, o Imperialismo e as Ditaduras Latino-americanas, o fim do Comunismo na URSS, a Redemocratização etc.) e sobretudo as reações a tudo isso ocorridas no campo das Artes e da Cultura, e agora com a volta do pensamento autoritário e a crise da Democracia no mundo, etc.. 28 Resgate – História e Arte III conservação e restauro quando indicado pelas investigações procedidas na fase de instrução para o seu acautelamento. 55 Sim, a última impressão é a que fica, mas quando é possível resgatar a anterior, que prazer nos causa!56 VIII Volto à questão da “adição” e da “subtração” em Arquitetura, pois que ambas alteram a feição primitiva do monumento. Embora, em geral ocorram em momentos distintos, no da criação do monumento e ulteriormente quando de sua decomposição a que está sempre sujeita no devir histórico. Evidentemente, do ponto de vista estético, provocam no espectador sensações e sentimentos diferentes, digamos para o bem ou para o mal. De certo, como avaliava Riegl, a adição, feita depois do momento de criação, pode por vezes criar um Valor de Novidade e dar nova e agradável unidade ao monumento. Mas isso, segundo ele próprio, estará sempre condicionado ao panorama cultural do espectador. Mesmo assim, diz ele, a avaliação é subjetiva e varia de indivíduo a indivíduo; decorre da apreciação de cada um. Todavia, afora isso, observamos que a apreciação estética está sempre condicionada pela impressão que temos do monumento na sua totalidade, ao conjunto das partes que formam a sua unidade e que produzem em nós sensações agradáveis e prazerosas e nos auxiliam a concebe-la como bela. Quando tais sensações não ocorrem, quando a adição, ao contrário fere esse princípio da unidade artística, provoca em nós, espectadores, sensações opostas, de desprazer e julgamo-la defeituosa, incompleta, e, do ponto de vista estético, causa-nos sentimentos de insatisfação. Vejamos o caso da igreja do Carmo de Itu, considerando esses dois momentos, ou ciclos, o da criação – relativamente longo – e o da degeneração da sua unidade – fruto de acontecimentos fortuitos e naturais, e, por que não dizer, criminosos. Sua história advém de um episódio singular que só terá correspondente décadas depois nas regiões centrais da Colônia, onde o Governo português impediu o ingresso das ordens conventuais, e por essa razão, as Ordens leigas a elas tradicionalmente vinculadas, foram autorizadas a erguerem seus templos independentemente da presença e da assistência dos conventuais. Desse modo, a igreja do Carmo de Itu precedeu ao que se tornaria comum em Minas Gerais. Vejamos como isso ocorreu. 55 Apesar de aposentado já faz quatro meses ainda não me desvencilhei inteiramente da lógica preservacionista instituída em minha cabeça iphaniânica. 56 Dizia sempre aos meus novos colegas da Superintendência do IPHAN em São Paulo: o técnico em preservação, não importa qual a sua profissão, deve se propor a duas tarefas fundamentais: 1. Instruir ao menos um processo de tombamento e 2. Propor e acompanhar ao menos um processo de restauro arquitetônico e/ou artístico. Ambas requerem muito estudo, muita pesquisa, muita reflexão, muita comparação, muita investigação do bem objeto de tombamento e/ou restauro, e muita responsabilidade profissional, que, em resumo, qualifica o técnico e lhe dá confiança e consciência do seu papel institucional perante a sociedade brasileira. 29 Resgate – História e Arte III Havia em Itu, no início do século XVIII, um grupo de devotos de Nossa Senhora do Carmo, que tomou a iniciativa de construir uma capela (1717) onde passaram a se reunir em oração. Se havia desde o início a pretensão de, assim procedendo, burlar as leis e costumes que ordenavam a vida comunitária entre Irmãos Religiosos e Leigos, e que estabeleciam que a criação da corporação leiga, denominada Ordem Terceira, só teria autorização se formada sob a proteção e abrigo da Ordem Primeira, isto é, nas dependências da Igreja e Convento carmelita, não nos cabe duvidar. Não restou documentação que elucide essa questão. Conformemo-nos, aceitando o que a literatura histórica ituana nos relata sobre a sua origem, assim surgida de uma pequena capela que, cerca de meio século depois, dará origem a atual igreja. Teve ela a progressão que inicialmente sugerimos, transformando-se depois em capela mor de um edifício que se construiu em continuação e que constituiu a nave e corredores laterais da igreja propriamente dita. Com uma correção apenas, que acabou se tornando o seu defeito que, todavia, sendo muito sutil, nota-se melhor em planta. Foi dessa maneira que a Professora Maria Helena Flexor notou e me perguntou a razão. Disse-lhe em resposta que a capela mor ‘torta’ é mesmo devido à sua história que é a história da imensa maioria das igrejas brasileiras. Começava com uma capela, ou pequenina igreja. Esta por sua vez, anos depois, tornava-se a capela mor de uma nova e maior igreja. Quando da construção da capela primitiva (1ª metade do XVIII) não havia preocupação com o que havia na frente, um largo terreno que daria origem posteriormente à praça. Assim, quando depois (2ª metade do XVIII), a capela se tornou igreja, para construir a nave adiante da antiga que se tornou capela mor da igreja nova, foi preciso alinhar o corpo da igreja à rua ou praça, que, penso, a essa altura já estava mais ou menos delineada. E a capela mor ficou torta.” E acrescentei: “Essas 30 Resgate – História e Arte III considerações ou conjecturas, me fazem pensar que é possível verificar por meio de prospecção na área de junção dos dois espaços construídos, analisando a textura e a composição da massa das paredes de taipa e a da parede do vão entre eles. Vou sugerir isso ao arquiteto restaurador. Abraços. Mas, quando ocorreu a construção da igreja, um bom tempo havia se passado. A primitiva capela de 1717 transformara-se sessenta anos depois (1777) nesta que vemos em planta, com exceção da torre que será construída depois. Não temos informação segura, mas é plausível admitir que enquanto a igreja era construída às expensas dos Irmãos Terceiros, os Religiosos do Carmo já erguiam o convento alinhado à sua esquerda. Nessa altura convém observar outra propriedade dessa igreja. Quem a observa, a impressão inicial é a de que se trata de igreja da Ordem Primeira do Carmo, com o convento ao lado, como tantas outras desse padrão. Basta, todavia, adentrar a nave para verificar que se trata de uma capela de Ordem Terceira carmelitana, onde era costume expor nos altares laterais as imagens dos Passos da Paixão de Cristo, talhadas em madeira bem no estilo expressivo daquela época. Afora essas, observamos outra singularidade que a distingue ainda mais das demais. Pois que o artifício utilizado no início do século pelos Terceiros carmelitanos para enganar a comunidade franciscana local e burlar as autoridades construindo sua capela para atrair e depois acomodar os Frades carmelitas em Itu, invertendo a ordem costumeira, condenara-os a ter somente uma igreja na Vila, de modo que tornou impossível implantar o partido adotado nos demais conjuntos carmelitanos paulistas que se formaram à época57. 57 Originado na cidade de S. Paulo em meados do século XVIII, irradiou-se a outras localidades paulistas onde se estabelecera a comunidade carmelitana, o partido formado pela disposição da Capela dos Terceiros com a Igreja e Convento dos frades, unidas pela torre, num mesmo plano. Este partido foi adotado em Santos, Mogi das Cruzes e também em Angra dos Reis/RJ que pertencia a Província de Santo Elias. 31 Resgate – História e Arte III Mas, calma! Não estou a pleitear que hoje, depois de passados dois séculos e meio, promovemos a complementação do partido carmelitano paulista construindo a segunda igreja que jamais foi construída à época. Não. Queremos antes entender o contexto cultural ao qual estava vinculada para melhor apreciar a solução que lhes foi permitido alcançar naquele momento. Assim a comunidade carmelitana de Itu foi obrigada a criar uma variante do mesmo partido e que resultaria em uma solução plástica singular, cumprindo ordinariamente o programa, conferindo-lhe, porém, configuração apropriada àquele momento de criação artística. Devemos, porém lembrar o que já dissemos a esse respeito; o momento de criação desenvolvia-se com a lentidão própria da época, especialmente tratando-se de Arquitetura Religiosa. E nesse caso da Carmo ituana temos a sorte de contar com uma imagem que testemunha sua gestação, já esboçando a solução criativa consubstanciada anos depois. Esse testemunho devemos ao artista ituano, contemporâneo dos fatos aqui narrados, Miguelzinho Dutra. Por essa imagem, datada de 1814, verificamos o que havia sido feito até então. Como se vê, a torre inexistia ainda. O conjunto se limitava à igreja e ao convento. Neste, pode se observar três entradas, duas próximas à igreja e uma terceira à esquerda onde, já na virada do edifício, figura um corpo em apêndice ao cômodo aonde se reuniam os frades em Capítulo, representando uma sineira que, de certo, foi eliminada quando da construção da torre. E, à direita, vemos um corpo edificado em continuação à igreja (e que à primeira vista parece representar a fachada lateral do templo, porém tal visão é enganosa, pois existe até hoje) o qual dará, em parte, lugar à torre que se construirá depois. Um muro de taipa, já acabado e protegido por telhas, delimita o terreno contiguo até certa distância onde vê-se despontar um edifício (à 32 Resgate – História e Arte III direita da imagem), separado e distante do conjunto já construído, com a taipa ainda à mostra, embrião da capela do jazigo que se formava no espaço por detrás do muro. Configurava-se, desde então, a solução arquitetônica que irá se alcançar em definitivo com a construção do frontispício da capela do jazigo e com a elevação da torre da igreja. 33 Foto antiga do conjunto carmelitano de Itu – meados do séc. XIX. Arquivo do IPHAN/SP Desse modo, a comunidade carmelitana de Itu, sem alterar substancialmente o programa estabelecido pelos demais conjuntos arquitetônicos, soube adequar-se ao influxo criativo predominante na Província de Santo Elias. O que vem de encontro ao conceito riegliano da Kunstwollen, ou seja, à “vontade artística formativa”, originária, a cujo impulso obedecia. Vale observar que nessa variante do partido carmelitano adotada em Itu a cúpula que figurou durante certo período na torre (inicialmente em forma de bulbo e depois substituída por outra piramidal, destruídas ambas ao que parece por poderosos raios de tenebrosas tempestades que de tempos em tempos acometem a cidade de Itu) cumpria papel especialíssimo no desenho do conjunto, pois que, elemento que arrematava a torre, funcionava também como componente de distribuição da massa edificada, em proporções harmoniosas, conferindo desse modo personalidade ao arranjo arquitetônico elaborado naquele momento especial de sua criação. Quem aprecia a Arquitetura de boa qualidade, quem deleita-se com a Arte e tem senso estético, de certo sabe reconhecer sem hesitação o valor artístico e documental deste partido carmelitano de Itu. O que, porém, hoje resta dele é uma deformação ridícula do que fora uma composição arquitetônica autêntica, única, cuja perda tornou-se ainda maior quando, havia se passado um ano somente do tombamento (1966), a Província carmelita juntou-se ao prefeito da ocasião e de comum acordo resolveram demolir a capela do jazigo, autorizando também a remoção das antigas lajes e carneiras com os restos Resgate – História e Arte III mortais de frades e Irmãos Terceiros de outrora ali sepultados. Com que propósito? Abrir uma rua em meio ao quarteirão! Esse ato criminoso, ao que parece, não sensibiliza mais o observador contemporâneo e muito menos alguns profissionais dessa categoria especial que chamamos de arquitetos-preservadores filiados à corrente historicista atual. A reconstituição da capela e do jazigo correspondente deveria ser feita não como uma repristinação apenas, mas como reparação moral e mereceria placa aludindo às violações e aos dolos ali praticados. IX Por falar em perdas e deformações, reproduzo aqui um trecho do resumo apresentado por Maurício Maiolo Lopes em tese de mestrado em que analisou as reformas urbanas que alteraram a arquitetura religiosa de Itu, no período entre 1873 e 1916. Diz ele que os fatores determinantes das transformações ocorridas nas igrejas representativas do ‘passado colonial’ (igrejas Matriz, de N. Sra. do Patrocínio e as igrejas administradas pela Cia. de Jesus como a de São Luís, do Bom Jesus e da Boa Morte) se deveram não só a ideologias, mas sobre tudo ao posicionamento da Igreja Católica frente as novas modalidades de projetação e seus vínculos com as transformações tecnológicas que na virada do século tiveram suas fachadas completamente modificadas em estilos ecléticos. Foi assim, que entre 1887 e 1889 a matriz passou por uma grande reforma que a transformou significativamente. Reformada, a ‘nova’ matriz causou ressonâncias, influenciou outras reformas e, ao fim e ao cabo, tomou justo posto junto a outros grandes símbolos do “programa modernizador” das transformações urbanas da cidade, conclui Maiolo Lopes, lamentando a Carmo não ter seguido o roteiro reformista que vigorou então. Eu, de minha parte, refletindo sobre o que concluiu acerca da modernização das igrejas coloniais ituanas, e relacionando aos Valores de ajuizamento de Aloïs Riegl sobre os monumentos, faço a seguinte ponderação: o espectador ituano, à mesma época do historiador austríaco (fim do século XIX começo do XX), assistiu, ao que parece sem impor resistência, às reformas que alteraram significativamente a paisagem urbana e lhe conferiu uma modernidade, inautêntica porque exógena, meramente fachadista como se tratasse de uma operação plástica no rosto de um idoso que o revestisse com uma pele nova, sobre cuja beleza ou feiura me abstenho de considerar. Assim se fez então. Apagou-se as antigas configurações de suas igrejas, deixando, todavia, e felizmente, inalterado o restante de seus corpos que desse modo preservaram o que ainda existia da vontade artística originária, especialmente seu acervo artístico interior. Esse fachadismo, que obedeceria a uma outra suposta kunstwollen, a vontade artística moderna, todavia, ao se realizar, interrompeu o processo natural de seu envelhecimento (que teria sido grandemente valorizado por Riegl e mais ainda por nós), corrompeu sua artisticidade originária com uma estética burguesa postiça, sem compromisso para com a história da cidade e a cultura religiosa ituana, adulterando monumentos de Valor Histórico e Artístico autênticos, tudo em nome e por conta de uma “modernidade” importada, inautêntica. 34 Resgate – História e Arte III Mas o que mais nos surpreende nos dias de hoje, é a aceitação fácil e irrefletida de teorias produzidas no estrangeiro, cuja elaboração emana e expressa realidades e experiências diversas das nossas, e, como se constituíssem cartilhas para uso generalizado, há quem propugne a sua adoção (a despeito mesmo de suas diferenças) como conjuntos de regras universais que, todavia, não se ajustam perfeitamente à nossa realidade, ao nosso patrimônio. X E as torres afinal? Pois é, a despeito de terem sido as últimas a se edificar, sobressaíam na paisagem urbana de Itu durante boa parte do século XIX, coroando os velhos frontispícios setecentistas e pontuando o eixo histórico da cidade de Sul a Norte quando foram obrigadas a ceder lugar a outras, em nome de uma modernização que a um só tempo desprezava as feições características da arquitetura religiosa tradicional, eliminando-as, e impondo em seu lugar configurações de grande variação estilística (mesmo que limitadas às fachadas), que aos espectadores ituanos (assim como de inúmeras outras cidades paulistas, inclusive a Capital) ecoavam tempos e períodos estilísticos antes jamais vistos entre nós pois que representativos da História do Velho Mundo. Esse o caráter da modernização então estabelecida em Itu. A exceção foi a Carmo, única que, por manter sua fachada intacta, bem poderia receber de volta a cúpula bulbosa que a tempestade um dia destruiu, reconstituindo-a por inteiro visto que não é inadequado dar-lhe tratamento semelhante ao que se faz com as lacunas de uma obra de arte (como aconselhava Cesare Brandi 58), que, a bem da verdade, não deixa de ser; lógico fazendo uso de materiais modernos porém esteticamente compatíveis aos utilizados por seus primeiros construtores (e de 58 Já que adquirimos também o hábito provinciano de citar autores estrangeiros, vejamos o que recomendava a respeito. Escreveu o famoso restaurador, que era historiador e crítico de Arte: “Queríamos que o problema do tratamento das lacunas não recebesse uma solução que prejudicasse o futuro da obra de arte ou alterasse a sua essência - absoluta e fácil distinguibilidade das integrações que realizam a unidade potencial da imagem, diminuição da emergência da lacuna como figura – são referências seguras que permitem uma grande variedade de soluções específicas, que, no entanto, serão sempre unívocas no princípio de que derivam. É claro que se alguns esquemas espontâneos da percepção evoluírem, será sempre possível, no futuro, aplicar às lacunas um tratamento que leve em consideração esse aprimoramento da percepção. Por isso, não demos receitas e não as daremos; mas o princípio não muda e os dois momentos da história da arte permanecerão sempre distintos, assim como permanece distinta a historicidade da obra de arte como criação do artista, da historicidade de que goza uma vez que entrou no mundo da vida. Nem pode ser contestável que nós, enquanto operamos a recepção da obra de arte, insistimos nessa segunda historicidade, e sobre essa historicidade devemos modelar o nosso comportamento em relação à obra de arte, também quando a obra se apresentar incompleta ou lacunosa” (grifos meus). Op. Cit. pp 129-130. Porém, para não ficarmos somente com as palavras do restaurador Cesare Brandi, lembro aqui as de Antonio Luiz Dias de Andrade relativamente ao método propugnado pelo arquiteto-restaurador Lucio Costa acerca da reconstituição da primitiva torre da Capela jesuítica do Embu, que, uma vez retirada a “chapéu de palha que abobalhava a sua fachada” como a definiu Mário de Andrade, não era outra coisa senão uma lacuna a ser preenchida. Lucio Costa opinava nestes casos no sentido de recompor o conjunto arquitetônico ‘de acordo com o espírito da época’ acenando com a possibilidade de conferir ao processo de restauração liberdades de projeto, desde que observados os princípios de época, os quais cumpria identificar e respeitar. (grifos nossos) ANDRADE, Antonio Luiz Dias de – UM ESTADO COMPLETO QUE PODE JAMAIS TER EXISTIDO. Tese de Doutorado. FAU USP SÃO PAULO 1993. 35 Resgate – História e Arte III conformidade aos princípios da época como recomendava Lucio Costa), que, por sua vez, preservavam o gosto que predominara no século anterior (XVIII), as torres preferindo a forma bulbosa de rematá-las, com exceção da primitiva igreja de N. Sra. do Patrocínio que Jesuíno quis piramidal,59 mas, cujos lados não desciam em linha reta, pois que apresentavam um leve movimento que lembra um pouco o das vestimentas das figuras que retratava nas telas e nos forros das igrejas, sempre em pé, com gestualidade contida e delicada que caracteriza as suas pinturas.60 março de 2020. Carlos Gutierrez Cerqueira MAYER, Vilmar Francisco – Aspectos gerais da arquitetura religiosa colonial baiana. Diz o Autor a respeito da configuração das torres: ”No início do século XVIII ainda se observa o uso das formas clássicas renascentistas, mas procurando obedecer à imposição da moda. As fachadas das igrejas foram se transformando através da sobreposição de ‘elementos barrocos’, como também da utilização de portadas e janelas com acentuado verticalismo, de frontões curvos e do coroamento das torres em forma ‘bulbosa’, apesar de que algumas igrejas tenham conservado a forma piramidal, típica do século XVII”. Pág. 149. https://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_3-4/15_Vilmar%20Francisco%20Mayer.pdf 59 60 Estamos sempre a aprender e eu tenho a sorte de aprender muito com a generosidade do Professor Mateus Rosada que me enviou e-mail três dias após ter enviado este artigo, corrigindo-me sobre a forma das torres da igreja de Jesuíno, a Na. Sra. do Patrocínio, corroborando todavia meu comentário sobre o estilo de sua pintura: “Bom dia, querido Carlos, Eu não parei ainda pra ler seu artigo - coisas dessa reorganização para deixar o maior volume possível de material para os alunos na quarentena... Dei uma passada de olho especialmente no final; é uma visão interessante sobre a ideia de conjunto. Acho muito apropriado recompor o bulbo da Igreja do Carmo. Sobre o Patrocínio, repare que os pináculos das suas duas torres não eram piramidais, mas campaniformes (forma de sino). Essa forma de arremate já não é renascentista ou maneirista nem mesmo neoclássica, mas relativamente comum especialmente no rococó (estilo das pinturas do Padre Jesuíno, talvez por isso também o estilo de sua arquitetura). Por exemplo, a Igreja do Carmo de Ouro Preto tem cúpulas campaniformes, assim como a Igreja de São Francisco de São João del-Rei as tinha no projeto de Aleijadinho. Os desenhos de Miguel Dutra mostram a Patrocínio com essa solução.” O e-mail é acompanhado de imagens das igrejas citadas. 36