Localização das Amostras - Gravações do Grupo de Variação do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa  -  Registos Sonoros


Dialectos portugueses setentrionais:

região subdialectal do Baixo-Minho e Douro Litoral
Vila Praia de Âncora 
1

INF = Informante

INQ = Inquiridor

 

INF Mas, ele havia muita fome, naquele tempo. A fome, minha senhora… Passavam-se… Nós… Haver, ele a fome não havia! Havia muita comida com abundância, mas não se podia comer. Olhe, as batatas vinham, iam para a panela desta cor, com tona e tudo. Peixe, o peixe, salgavam-no assim (…) num cabaz. Ali estava aquele peixe, que botavam sal para cima. Mexiam aquele peixe com aquele sal, assim com o cabaz. Estava ali aos dois, três dias; lavavam aquele peixe, ia assim para a panela. Conforme vinha da cozinha (…) aquela comida, ia toda assim para o mar. Sabe o que nos valia? É que eu, olhe, (…) o pouco dinheiro que uma pessoa ganhava naquela vida… Que aquele tempo (…) ganhava-se pouco. Trazia-se um barco carregado de peixe, de bacalhau – trazia-se um barco carregado de bacalhau! –, trazia-se (ali) dois, um conto e meio, dois contos naquele tempo. Bem, naquele tempo, era um bocadinho mais; mas era pouco, (…) ao peixe que nós trazíamos! Hoje trazem… Hoje trazem (logo) uma bagatela de peixe, ganham-me um dinheirão! Ganham-me um dinheirão! E o que nos valia a nós… Estão aqui dúzias deles que… Isto andou cá tudo ao bacalhau! O que está aqui! Andou cá tudo ao bacalhau! Está aqui um – e mais – e aquele também. É que nós levávamos cinco litros de azeite, um saco de batatas, levávamos umas cebolinhas, levávamos alhos, levávamos (…) um barrilzinho de vinho, que metíamos em Lisboa, daquele vinho do sul, (…) e era assim. E depois, fazíamos à nossa moda. Fazíamos à nossa moda, a comida.

INQ Mas isso também não durava muito tempo?

INF Pois não. Era só naquelas horas. Quando a comida era fraca, nós… Bem… Porque ali havia dias que se comia melhor do que outros. Quando era assim aos domingos e quintas-feiras, davam-nos aquela carne de orça! Carne de cavalo! Carne de cavalo! Aquela carne de cavalo, se fosse bem preparadinha, comia-se bem. Havia um que se comia bem. Mas havia outra que era desta cor – era preta. Aquela, mesmo se viesse preparadinha bem à moda – à nossa moda, não é? – comia-se bem, minha senhora. Mas aqui assim, havia bandejas de comida daquela que ia toda para o lado. Tudo. Ninguém a  punha à boca. Não senhor. Mas havia uma, que era a entremeada… Essa, essa era só para os oficiais, homem. A nós davam-nos uma vez por acaso, daquela carne. Deus me livre! Que miséria! (Ele) naquele tempo só havia (era) miséria!

 

© Instituto Camões, 2002