Português fora da Europa - Registos Sonoros
(Gravações do Grupo de Linguística de Corpus do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa)
Bacelar do Nascimento, Maria Fernanda (org.), Português Falado: Documentos Autênticos (Gravações audio com transcrição alinhada). Lisboa: Centro de Linguística da Universidade de Lisboa & Instituto Camões. 2001 [CD-ROM]


-> como essa palavra que muita gente ouve nordestino chamar de "bichinho".

- bichinho.

-> é uma palavra carinhosa.

- hum, hum.

-> a pessoa chama de bichinho a outro,  [...] pessoa, a pessoa gosta. como um pai chama um filho, um filho chama a mãe, pode chamar a mãe de bichinho: "ó bichinho..." é uma palavra de carinho, não é uma palavra de ofensa

- hum, hum.

-> não é, não é uma palavra ofensiva, bichinho. então, o, deu-se uma coisa muito interessante: eu fui em setenta e sete à Paraíba, a João Pessoa, mas eu lá tive que ir a Guarabira. fui levar umas encomendas, um rapaz que me pediu. fui lá em Guarabira levar. fui eu e aqui minha patroa.

- hum, hum.

-> cheguei lá nessa casa, quem nos atendeu, para não fugir à regra no nome, foi dona Severina, não é, foi dona Severina mesmo, que é uma senhora, não é, aí, ficamos lá na varanda, batendo um papo, conversando muito com dona Severina, e, e dona Severina: "senhor moço, o senhor é do Rio mesmo?" eu digo, "sou, senhora dona Severina, sou do Rio mesmo." "mas sabe porquê? é porque eu estou conversando com o senhor, o senhor é carioca e eu estou entendendo tudo que o senhor está me dizendo. tudo que o senhor está me dizendo como carioca eu estou entendendo. mas meus sobrinho não; vão lá para o Rio de Janeiro, passam lá quatro, cinco mês, quando chegam aqui, eu não entendo nada do que eles dizem!"

- ai é...

-> então, eu vou lhe dar uma explicação, ó dona Severina: "é o ambiente que o sujeito, que a pessoa vive lá no Rio. é porque o seu sobrinho, é o seguinte: o rapaz..." - eu não vou dizer seu sobrinho, não é,

- hum, hum.

-> depois eu fui até saber, depois ela me mostrou uns quadros na parede, ela era irmã de dois escritores paraibanos famosos

- hum, hum.

-> não é, lá, tinha lá os nome dele.

- hum, hum.

-> pessoas, ela morava até numa, essa casa é uma casa muito boa, apesar de ser em Guarabira, era uma família de muito recurso - então, ela dizendo para mim. eu digo "olha, vou lhe explicar, dona Severina: seus sobrinho vão daqui para lá. quando a pessoa está no Rio, manda chamar e acolhe a, tal. mas o rapaz sai daqui para lá para procurar emprego, não encontra, é do ambiente que ele vive. eu sei o que é. eu sei o", eu vou dizer assim "eu sei o que é." "é, porque ele chegam aqui com umas conversa, sabe, seu Paulo, uma conversa que eu não entendo." eu digo "já sei o que é, é: "estou numa boa", não é isso que eles dizem para senhora?", não é, "estou numa boa, porque agora, não sei quê, comigo é i[...]," "é, exactamente, exactamente isso que ele, eu não entendo, não entendo nada do que ele fala, nada do que ele fala." então, eu estava explicando a ela que é do ambiente que eles vivem aqui...

- hum, hum.

-> até, vão trabalhar nessas obras, nessas obras, frequenta-se meio de, de, de, de favela, e essas bodega e tomando essas pinga, eu dizendo para ela, não é, naqueles botequim, naquilo tudo e... então, eh, eles conversam naquele meio, entre eles. isso é conversa de gente, é só, "está me entenden[...]?" "não, agora eu estou entendendo o que o senhor está dizendo, porque o senhor diz que é carioca, eu estou entendendo o senhor está falando, eu não entendo os meus sobrinho, quando vão para lá e voltam para aqui, e vêm de volta

- hum, hum.

-> eu não entendo eles." pois bem, então falam muito assim. e muita coisa varia, não é, por exemplo, nós aqui no sul dizemos "estamos com pressa", não é,

- hum, hum.

-> [...] está com pressa, está com pressa mesmo; se está com vergonha, está, nós estamos avexados, não é, está um pouco avexado. lá já não, não é, eles chamam às vezes "vem cá, vem! ó, ó Zé, vem cá, Zé!" ele grita "não posso não, seu, não posso não, seu, estou muito avexado, estou muito avexado." está com muita pressa.

- pressa, não é,

-> é, está com muita pressa, está muito avexado. então, o nordestino é assim, eles têm esse sotaque. o cearense fala... já mais can[...], o cearense fala cantando também... um sotaque muito estridente. o ce[...], o... norde[...], esse, esse é do paraibano, não é, ele é muito paraibano. o baiano já não. o baiano, para mim, tem uma... diferença. o pernambucano fala assim, como se estivesse conversando consigo, mas é como se estivesse discutindo, sabe,

- sim.

-> principalmente o, o homem de dentro mesmo, o sertanejo, ele conversa assim, como estivesse discutindo, sabe como é, ele gesticula muito, bate muito, não é, e

- hum, hum.

-> no modo dele... falar. e...

- e essas diferenças assim...

-> agora, eu vou lhe contar uma diferença muito interessante. eu cheguei no Pará, então, no Pará usa-se muito, depois, mais tarde, não é, eu mesmo - quase como se fosse uma pesquisa - no Pará, fala-se muito o português de Portugal.

- não, é?

-> é, o português com muitas palavras do português de Portugal. porque nós falamos o português, mas o português em Portugal

- hum.

-> falamos completamente diferente. por exemplo, no Pará não diz "tem uma esquina", "tem um sobrado". no Pará não diz aqui nós dizemos "na esquina... da Álvares de Miranda", não é, "com a avenida suburbana", "você vai lá, fulano, no sobrado, está," no Pará diz "no canto da rua tal", "nos alto", que é o sobrado, não é, por exemplo, "vou fazer, vou," aqui, como você diz, "vou fazer um terno"

- hum.

-> "um terno de roupa". no Pará, "eu vou fazer um fato".

- um fato.

-> é português.

- ham, ham.

-> português. porque é um terno, todo mundo sabe que o terno é, são três, é paletó, colete e calça que hoje está voltando. chama-se um terno, não é,

- hum, hum.

-> colete, calça e paletó, um terno. porque tem a palavra de um terno? você diz "esse aí é um terno", não é, porque é o terno: calça, colete e paletó. então no Pará ainda se usava muito. terno, usava. então, prepararam a comida no Pará, assim na nossa chegada, isso foi o primeiro contacto. nós, cariocas, com o paraense. e prepararam uma comida rápida. a comida mais rápida que eles encontraram foi cortar uma carne seca, para eu, para mim aqui, para você. cortaram uma carne seca e fizeram uma farofa rápida. aí, me veio aquela comida, nós começámos a comer e foi um tal de, é, beber água que não dava para nada. aí, veio um rapaz, um rancheiro, nós estávamos na primeira bateria mo[...], primeira bateria automóvel...

- hum, hum.

-> chamavam automóvel porque ela lá já tinha sido infantaria, não é, cavalaria, infantaria, e estavam fazendo um motorizado, botando ela já motorizada: carro, não é, veículo, viaturas.

- hum, hum.

-> e a mesa era de quatro pessoas. sentávamos quatro na mesa.

- certo.

-> ele chegou, disse "olhe, não repare não, porque a jabá foi feita avexada." poxa, aí olhamos para cara do outro, "não repare não, a jabá foi feita avexada." traduzido: "não repare não, porque a carne seca foi feita às pressa."

- hum.

-> por isso ela estava salgada.

 

 


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