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Vida apagada
Edição 218 - Dez/03


A família Barbosa, de Itariri, SP: drama repetido aos milhões Brasil afora

Milhões de brasileiros, como Oswaldo Barbosa, de Itariri, SP, não ouviram o que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse no mês passado, em Brasília, ao lançar o programa Luz para Todos, nem o viram na TV, por tremida que fosse a imagem. Eles não têm rádio nem televisão, nenhum aparelho movido a eletricidade. Não foram contemplados com fios de transmissão porque habitam em locais de difícil acesso, não têm renda para adquirir o material elétrico necessário para acessar a rede (cerca de 500 reais para cada poste instalado) ou dinheiro para pagar as contas ao fim do mês. As 64 concessionárias existentes no país não ligam para eles porque vivem dispersos em montanhas, florestas, cerrado, sertão, brejos, mangues e descampados, geralmente longe uns dos outros. O ganho financeiro não compensa o gasto com posteação, fiação e instalação de retransmissores. Sem eletricidade, eles não ficaram sabendo da promessa do governo de iluminar todo o país até 2008. A maioria tomou conhecimento do programa por terceiros, dias ou semanas depois, e não entendeu direito como o projeto de universalização da energia anunciado pelo presidente da República os alcançará.

Paisagem do município de Itariri, no início da subida até a casa de seu Oswaldo: vida dura

Os 'sem-luz' formam um contingente de 12 milhões de almas penadas, segundo cálculos do Ministério das Minas e Energia, 10 milhões das quais batalham pela vida na zona rural - as restantes, nas cidades. Ou seja, uma em cada três das pessoas que moram no campo recorre cotidianamente ao fogo para reconhecer o outro, identificar o caminho, espantar bichos, fazer comida. É gente de vida apagada, adultos e crianças com identidades definidas durante o dia, apreciada em suas comunidades pelo caráter, histórico de vida e trabalho, mas párias ao cair da noite, quando se confundem na escuridão. No Vale do Ribeira, região mais pobre do estado de São Paulo, com 17 mil quilômetros quadrados de área (25 mil, incluindo o trecho paranaense, onde o rio nasce), são mais de 100 mil, segundo cálculos da Cedri - Cooperativa de Energização e Desenvolvimento Rural do Vale do Itariri, fundada em 1965, hoje com quase 2 mil cooperados. A topografia acidentada ajuda a preservar a natureza (a região abriga a maior área remanescente de Mata Atlântica do país), mas limita o uso de máquinas agrícolas. A população depende da banana, do extrativismo clandestino de palmito, lavouras de subsistência, cultivos isolados e criatórios de bois e búfalos para sobreviver.

Pedro Bueno, em sua casa, sob a luz do sol, que entra pela janela; à noite, ele
desaparece na escuridão

Os sem-luz também não têm telefone. A informação depende do boca-a-boca. O radinho de pilha é quase onipresente, mas nem sempre pega a estação e, quando pega, o som é ruim e as pilhas, caras. 'O nosso é lastimável', diz Oswaldo, que mora com a mulher, dois filhos e um neto em casa de pau-a-pique no alto da montanha, num ermo da Serra do Mar. A vista é linda. A vida, sofrida. Para chegar lá, só a pé ou em lombo de burro. São três quilômetros de subida íngreme, chão de terra escorregadio com mata invasiva, buracos e pedras. Ele nunca esquece a madrugada em que Valdeci, hoje com 21 anos, nasceu: 'Tava escuro quando a Antonha (a esposa, Antônia) começou a gemer e gritar pra dizer que o menino tava chegando (a bolsa amniótica estava prestes a se romper). Corri e chamei o Nelson (um vizinho), que me ajudou a deitar ela na rede. Então, a gente suspendeu a rede numa vara grossa, pôs nos ombros e desceu picada abaixo até a vila, atrás de socorro. Foi um sufoco'.

Porta de entrada do Vale do Ribeira, sinônimo de atraso econômico, tecnológico e social, Itariri, com 20 mil habitantes, fica 150 quilômetros ao sul da capital do estado, símbolo da pujança econômica, tecnológica e social do país. Tomando um ônibus, seu Oswaldo poderia passear em São Paulo duas horas depois e se extasiar com a profusão de luzes. Os paulistanos gastam anualmente milhões de reais iluminando a cidade para as festas de fim de ano. Para quem vive no escuro, andar pela Avenida Paulista em dezembro é um choque. A energia gasta no mês provavelmente daria para iluminar todas as moradias do vale, habitado por cerca de 350 mil pessoas.

Dino Perrone (à esq.), presidente da Cedri e Rosimárcia Lima com um dos filhos, diante da TV: energia e ânimo revigorado para melhorar a vida

Diferentemente do programa Luz do Campo, lançado durante o governo Fernando Henrique Cardoso com a intenção de dinamizar o agronegócio, o Luz para Todos visa a atender preferencialmente famílias rurais com renda até três salários mínimos, em municípios de baixo IDH - Índice de Desenvolvimento Humano, embora promova a energia também como instrumento de desenvolvimento econômico. A instalação de luz elétrica até os domicílios será gratuita para as famílias de baixa renda. O consumo, no entanto, será pago. Quem tiver ligação monofásica e consumo mensal inferior a 80 kwh/mês, terá tarifas subsidiadas. 'Só quem se coloca no lugar das pessoas sem condições de tomar banho quente, conservar comida, assistir TV, iniciar uma atividade produtiva, entende a importância do programa. Sem falar no jovem, que dificilmente ficará no campo se não tiver conforto, trabalho e lazer', endossa Jânio Stefanello, presidente da Infracoop - Confederação Nacional das Cooperativas de Infra-Estrutura, da Coprel - Cooperativa de Energia e Desenvolvimento Rural, de Ibirubá, RS, e representante do Ramo de Infra-Estrutura da OCB - Organização das Cooperativas Brasileiras.

Nem tudo é brilho, porém. Dinamérico Perrone, o Dino, presidente da Cedri há oito anos, lembra que a superposição de programas de eletrificação (primeiro, veio o Luz da Terra, estadual; depois, o Luz do Campo, em 1999; e, agora, o Luz para Todos) criou problemas legais, ainda não resolvidos. Como exemplo, ele cita casos de contribuintes que financiaram as ligações em até 72 meses e agora vêem outros à espera do mesmo benefício, a custo zero. 'É justo um pagar e o vizinho, não?', pergunta. A resposta, segundo ele, pode ser a inadimplência, caso os Comitês Gestores, encarregados da implantação do programa, não definam solução satisfatória para geradores, distribuidores e consumidores. Dino teme que um número grande de cooperados (a OCB reúne 184 cooperativas, com 560 mil cooperados) deixe simplesmente de pagar suas contas.

A concentração dos sem-luz no campo reflete a opção do país pela indústria como base para seu crescimento, em detrimento da agricultura. As concessionárias foram criadas dentro deste modelo (as fábricas geralmente são montadas perto dos grandes centros consumidores) e raramente esticaram fios além dos limites das cidades. As cooperativas de eletrificação rural surgiram nesse vácuo. A primeira foi a Força e Luz, de Erechim, RS, hoje Creral, fundada em 1941. Atualmente, são 122. Segundo a Infracoop, beneficiam 4 milhões de pessoas, 80% das quais são pequenos proprietários rurais. Embora pareça expressivo, esse número equivale a 1,3% do total dos consumidores das concessionárias. Em média, as cooperativas possuem quatro associados por quilômetro de rede, contra 20 das concessionárias, e têm receita cinco vezes menor, comparativamente.

O Ministério de Minas e Energia estima em 300 mil o número de empregos gerados pelo Luz para Todos. O superintendente do Infracoop, José Jordan, classifica o programa como 'ousado'. Tomando como base a experiência das cooperativas, ele afirma que, no primeiro momento, a população beneficiada (caso o programa seja efetivado plenamente) pensará primeiro em comprar geladeira, televisão e outros aparelhos de uso doméstico. Foi o que fez Rosimárcia Lima, do bairro do Areadinho, em Itariri. Depois de nove anos no escuro, a energia elétrica, finalmente, chegou à sua casa, não muito longe da de Oswaldo. 'Temos luz há um mês', diz, contente, referindo-se ao marido, Clementino, aos filhos Mateus, Cleiton e Pedro, de 8, 5 e 3 anos, e ao sogro Benedito, agregado. 'A gente vivia que nem galinha, dormindo e acordando com o sol', complementa. 'Agora, podemos guardar comida na geladeira, tomar água e suco gelados e ver TV.' Seu programa preferido é a novela Celebridade, da TV Globo, da qual não perde um capítulo. Animada, está pensando em construir uma casa maior ao lado, mais confortável, mais bonita, com muitas flores. Rosimárcia virou referência na região: 'É aquela que ganhou luz', dizem. Ela dispensa o rótulo de celebridade mas afirma, feliz, que a alegria voltou.

O segundo passo da população-com-luz-recente, de acordo com Jordan, é pensar numa atividade econômica, um jeito de ganhar dinheiro e escapar da miséria. O sonho de Pedro Bueno, por exemplo, é construir uma represa para criar peixes e ficar perto dos filhos, como no passado. Separado da esposa, mora sozinho numa casa de quatro cômodos, cercada de bambuzais, 300 metros abaixo da de Oswaldo. Pedro, de 53 anos, também é um 'sem-luz'. Seu único filho e uma das três filhas mudaram-se para a cidade. As outras casaram e fincaram pé na planura do vale, a 7 quilômetros de distância. De vez em quando, ele desce para visitá-las, brincar com os netos, ver TV e tomar uma cervejinha gelada. Os genros Ismael e Odinei sobem quase todo dia para ajudá-lo no cultivo de hortaliças, mas, para ele, é pouco. Sabe que seus filhos fugiram da escuridão. Seu coração lhe diz que, se houvesse luz, teriam construído suas casas ao redor da sua, não lá embaixo. Sente saudade.

Energia também é parâmetro de medição das desigualdades sociais. Segundo levantamento do governo, 62,5% da população rural da região Norte vive na escuridão ou na penumbra, à sombra de lamparinas, candeeiros, velas, lampiões, archotes, etc. Nas demais regiões, os percentuais caem para 39,3% no Nordeste, 27,6% no Centro-Oeste, 11,9% no Sudeste e 8,2% no Sul do país. O mapa da luz é o mesmo da exclusão. Mais de 90% das famílias sem energia elétrica têm renda inferior a três salários mínimos e 84% moram em municípios com IDH - Índice de Desenvolvimento Humano abaixo da média nacional (0,766).

É o caso de Novo Santo Antônio, de pouco mais de 3 mil habitantes, cidade do país com o menor índice de acesso à energia elétrica, onde apenas 8% dos domicílios são atendidos. Nazaré, uma das comunidades de Novo Santo Antônio, município da região de Campo Alegre, PI, foi escolhida como ponto de partida do programa. A prioridade do governo é atender inicialmente as populações carentes, assentados, comunidades desalojadas por construção de barragens e localidades sem postos de saúde nem escolas. Enfim, com infra-estrutura precária, dada a falta de luz. (veja o quadro abaixo).

Quadro de luz

Dos 5.507 municípios brasileiros, somente 214 têm eletricidade em todos os domicílios
População rural sem energia (%)
Nº de pessoas
NORTE - 62,5
2,6 milhões
NORDESTE - 39,3

5,8 milhões
CENTRO-OESTE - 27,6
367 mil
SUDESTE - 11,9
807 mil
SUL - 8,2
484 mil
Fonte: MME

Casa com antena parabólica no Vale do Itariri: privilégio de poucos

O governo gastará 5,3 bilhões de reais, provenientes de fundos setoriais como a CDE -- Conta de Desenvolvimento Energético e a RGR -- Reserva Geral de Reversão, para cumprir a promessa de levar energia a todos os brasileiros. O restante dos investimentos previstos, 1,7 bilhão, virá dos governos estaduais e de agentes do setor: geradoras, concessionárias de distribuição e cooperativas rurais. O Luz para Todos pretende antecipar em sete anos a universalização da energia, prevista anteriormente para 2015. O programa Luz no Campo, lançado na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, tinha como meta oficial levar energia a 1 milhão de propriedades rurais. Até o início deste ano, no entanto, pouco mais da metade havia sido atendida. Agora, a partir da reedição da resolução 223 da Aneel, as concessionárias terão novas metas de universalização do acesso à energia elétrica e serão obrigadas a concluir a eletrificação do país até 2008.

De acordo com o cronograma oficial, em 2004 serão atendidas 400 mil famílias da área rural em todo o país. Em 2005 e 2006, mais 500 mil por ano, e em 2007 e 2008, 300 mil anualmente. O programa deve ser iniciado ainda este mês ou, no máximo, em janeiro próximo, a partir da instalação de Comitês Gestores Estaduais de Universalização, com a partipação de representantes do Ministério de Minas e Energia, agências reguladoras estaduais, concessionárias, cooperativas, prefeituras e representantes da sociedade civil. Os comitês terão que resolver pendências legais e operacionais como, por exemplo, a questão dos financiamentos para instalação de redes.



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