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Texto : Prof. Alfredo Marques


O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas comemora este ano meio século da descoberta do méson-pi, por Cesar Lattes, Pesquisador Emérito da casa, seu ilustre fundador, na ocasião com apenas vinte e dois anos. Essa descoberta teve o mais amplo desdobramento científico, em âmbito mundial, e internamente, pelo que representou para o desenvolvimento da Ciência no Brasil. Pode-se dizer, sem exageros, que as iniciativas mais relevantes que garantiram um desenvolvimento científico ininterrupto, em ampla frente — a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, em janeiro de 1949, a do CNPq, em 15 de janeiro de 1951, e, posteriormente, de outras agências comprometidas com o desenvolvimento científico, a Reforma Universitária, isto é, a inserção da pesquisa científica no quadro operacional da universidade brasileira, a criação dos primeiros cursos de pós-graduação no país — todos estiveram direta ou indiretamente ligados àquele memorável feito.
 

Cesar Lattes

No plano da física mundial, a Segunda Guerra encerrara-se dois anos antes, marcada pela alegria do final de seis anos de perseguições, tortura, arrasadora destruição de vidas, de patrimônio, e pela dor dos sobreviventes de Hiroxima e Nagasaki, que o rádio e o cinema levaram ao testemunho de todo o planeta. Durante esses seis anos, físicos de ambos os lados do conflito foram, em grande parte, mobilizados para o esforço de guerra.

Em 1939, ano em que as primeiras ações militares tiveram curso, dando início à Segunda Guerra, a libertação do fogo de Prometeu era pouco mais do que um sonho; O.Hahn e F. Strassman descobriam a fissão nuclear, fenômeno que deu ensejo a intensas pesquisas. Como cada transformação produzida em um átomo de Urânio, por captura de um neutron, liberta apreciável energia nos produtos da reação, e é elevado o número de átomos, mesmo em quantidades minúsculas daquele elemento, a produção auto-sustentada das reações em cadeia seria capaz de liberar energia em doses formidáveis. Em breve diferentes pesquisadores chegavam à chamada reação em cadeia, isto é, à possibilidade de sustentar e até de ampliar exponencialmente a taxa de reações, ou seja, de construir uma arma de poder explosivo jamais imaginado. Os países europeus, envolvidos diretamente no conflito, comprometiam os orçamentos nacionais com os armamentos tradicionais e não podiam se dar à extravagância de se empenhar num projeto tão caro e incerto como o da reação em cadeia super-crítica. Foi diante do empenho de Leo Szillard e Eugene Wigner junto a Einstein que uma carta foi entregue ao presidente Roosevelt, solicitando-lhe que autorizasse a iniciativa de um tal projeto pelos E.U.A., antes que os países do Eixo o fizessem. Após demoradas consultas a físicos e políticos americanos e da comunidade internacional, Roosevelt concordou e teve início o Projeto Manhattan, culminando com a produção da chamada bomba atômica.

O Projeto Manhattan foi o primeiro empreendimento humano em grande escala, lidando com o desconhecido. Elementos químicos sobre os quais a experiência era escassa, muitas vezes com produtos voláteis ignorados, inclusive na toxidez e letalidade, afora aqueles tipicamente radioativos, como Urânio e Plutônio, necessários à sustentação da reação em cadeia, foram manipulados em grandes quantidades; não se sabe ao certo quantas vítimas ficaram no caminho mas é certo que não foram poucas. A incerteza quanto aos resultados prevaleceu até 24 horas antes do primeiro teste do artefato bélico, a 16 de março de 1945 no deserto de Alamogordo, dada a precariedade com que se podiam fazer predições que colocassem a experimentação em bases mais seguras (para os mais curiosos no assunto sugerimos a leitura de: Brighter than a Thousand Suns, Robert Jungk, Pelikan Books, 1965; Critical Assembly, publicado por um grupo de historiadores americanos, Cambridge University Press, 1993,além do clássico Smith Report, de 1945).

A descoberta do méson-pi não teve qualquer ligação com esse projeto, mas com a continuação natural da descoberta do fenômeno dos chuveiros penetrantes da radiação cósmica, pelo grupo da USP, sob a liderança de Gleb Wataghin (Wataghin, Paulus A. Pompeia e Marcelo Damy de Souza Santos, fizeram a descoberta original, em seguida aprofundada por outros membros daquele grupo). Gleb Wataghin veio ter ao Brasil por iniciativa do governo italiano, interessado no aumento do intercâmbio com países da América Latina, em particular aqueles que se beneficiavam com a imigração italiana; estiveram no Brasil, dentro dessa perspectiva, o eminente matemático F. Severi, em 1932, e o eminente físico E. Fermi, em 1933; este solicitou a Wataghin que participasse e assim veio este notável líder científico e hábil professor a ocupar a Chefia do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, então em formação, em 1934. Nesses primeiros anos da década de 30, C.D.Anderson e S.H.Neddermeyer descobriram na radiação cósmica uma partícula com massa intermediária entre a de um elétron e a do próton, a que chamaram mesotron. Sua existência foi confirmada poucos anos depois por Street e Stevenson, que mediram sua massa; pensou-se por algum tempo ser ela a partícula responsável pelos chuveiros penetrantes encontrados pelo grupo da USP. Embora essa conclusão fosse em parte verdadeira o experimento de Conversi, Pancini e Piccione mostrou que aquelas partículas apresentavam interação nuclear muito fraca e portanto não poderiam explicar a característica mais significativa dos chuveiros penetrantes - a produção copiosa de novas partículas a partir de um evento de colisão.

A descoberta do méson-pi, em 1947, não só veio esclarecer aquela dificuldade como outras, observadas na componente penetrante da radiação cósmica; entretanto adquiriu particular relevância porque sua massa, medida por Lattes, Occhialini e Powell, tinha valor, dentro das incertezas experimentais, compatível com o da partícula, proposta em 1935 pelo físico japonês Hideki Yukawa, como responsável por toda interação nuclear. A detecção desse méson, em 1948, por Eugene Gardner e Cesar Lattes, produzido artificialmente no sincrociclotron da Universidade da Califórnia, construído em 1946, veio confirmar aquelas expectativas, alimentando a presunção de retirar do perigoso empirismo todas as pesquisas que se relacionassem com a libertação da energia nuclear. A detecção do méson-pi assim produzido abriu principalmente novas perspectivas para estudos com feixes dessas e outras partículas, produzidas artificialmente, iniciando uma corrida por aceleradores mais potentes, que a guerra fria incentivou até recentemente. Embora o méson-pi, hoje, lidere em importância numerosos outros mésons e a interpretação mais em moda atribua aos quarks o papel fundamental que àquela época se lhe atribuía, é inegável o desempenho que teve na propulsão de todo o desenvolvimento científico-tecnológico da física dos últimos cinqüenta anos.






Cesar Lattes, Giuseppe Occhialini
e Cecil Powell, os dois últimos já falecidos, levaram chapas fotográficas muito sensíveis, conhecidas como emulsões nucleares a altitudes elevadas, onde a detecção dessas partículas seria presumivelmente mais favorável. Expuseram essas emulsões a cerca de 2.800 m nos Pirineus, mas a solução definitiva só veio após a análise dos eventos encontrados nas chapas expostas por Lattes no Monte Chacaltaya, Bolívia, a 5.600 m de altitude. Numerosos problemas técnicos precisaram ser resolvidos por Lattes e seus colaboradores, em particular o do desaparecimento da imagem latente com o tempo, que obrigava as exposições a serem mais curtas, diminundo assim o número de eventos efetivamente revelados. A foto acima é uma reprodução de um dos primeiros mésons, ainda na fase das exposições nos Montes Pirineus. Importa aqui acrescentar que essa descoberta teve também importantes repercussões no desenvolvimento científico da Bolívia e no estreitamento das relações culturais Brasil-Bolívia. Na verdade a descoberta do méson-pi repercutiu no desenvolvimento científico de toda a América Latina, razão pela qual a Organização dos Estados Americanos conferiu a Lattes o Prêmio Bernardo Houssay de 1979.




No Brasil a consequência imediata foi a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Uma vez constituído, o CBPF desempenhou importante papel na consolidação da pesquisa em física, no apoio a outras instituições de pesquisas que demandavam métodos nucleares para aplicação em seus problemas e particularmente no alavancamento da reforma universitária, pela colocação de sua "marca registrada": a inserção da pesquisa científica numa universidade cuja tradição formativa se fazia primordialmente de forma livresca, sem maior participação na edificação da ciência do século XX. Da maior importância nesse particular foi a criação do CNPq, dois anos depois. Após decisivo empenho nos primeiros anos essa agência foi complementada pela CAPES e pela FINEP que, juntamente com o CNPq passaram a conduzir o processo de formação de quadros para o desenvolvimento, no plano federal. Foram seguidas por numerosas outras agências similares em diferentes Estados da União. Importa mencionar, ainda, a criação dos cursos de pós-graduação da qual o CBPF foi a instituição pioneira. Suas iniciativas na pós-graduação datam de 1963, criada por J.Leite Lopes, também fundador da casa; em 1965 formava-se no Brasil o primeiro pós-graduado, o saudoso Prof. Jorge Sylvio Helman. O méson à esquerda recebeu uma dedicatória dos seus descobridores, Lattes, Occhialini e Powell, ao Almirante Alvaro Alberto da Motta e Silva, datada de 3 de abril de 1947 ( a dedicatória não aparece nessa reprodução). Alvaro Alberto que, na ocasião, era o representante brasileiro na Comissão de Energia Atômica das Nações Unidas, foi o primeiro Presidente do CNPq. Da esquerda para a direita, em baixo, se vê a trajetória de um méson-p que, no ponto indicado A se desintegra num outro méson, mais leve, o mesotron, de Anderson e Neddermeyer, hoje conhecido como múon. No ponto indicado B o múon desintegra-se, emitindo um elétron que, entretanto não, é visível nesse tipo de emulsão, por falta de sensibilidade.