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El tráfico del deseo: interseccionalidades no marco do turismo sexual no Nordeste do Brasil

Adriana Piscitelli

Universidade Estadual de Campinas

Apresentação

Na produção sócio-antropológica, o turismo sexual é considerado uma expressão das desigualdades que permeiam a “nova ordem global” (Appadurai 1996). Nesse debate há uma convergência em considerar que o turismo sexual outorga visibilidade às relações entre Norte e Sul, entre privilégios e opressões, pondo em evidência o papel da supremacia masculina (Seabruck 2001, Skrobanek 2001). Do meu ponto de vista, porém, o turismo sexual apresenta aspectos intrigantes em termos de gênero, particularmente no que se refere à articulação entre gênero e sexualidade, quando se levam em conta as alterações na geografia dessa problemática.

Estudos sobre a problemática realizados em diversas partes do mundo mostram que essa noção de supremacia masculina engloba diversos estilos de masculinidade (Cohen 1986, O’Connell Davidson 1996, Kempadoo 1999). Ao mesmo tempo, os sites da Web voltados para viajantes heterossexuais à procura de sexo permitem perceber que os diversos países neles listados são vinculados a caracterizações diferenciadas em termos de sexualidade e de feminilidade. Esses espaços virtuais mostram que os destinos privilegiados pelos turistas sexuais são definidos não apenas em função da possibilidade de sexo barato, mas também por construções de gênero e de estilos de sensualidade vinculados a certas regiões e a certas nações (Piscitelli 2003). E a valorização desses lugares altera-se ao longo do tempo. Nos circuitos mundiais de turismo sexual, locais que há décadas são alvo dos viajantes à procura de sexo vêm perdendo valor no mercado transnacional de sexo. Paralelamente, novas regiões, como o Nordeste do Brasil, tornam-se almejados destinos (Piscitelli 2003/a). No marco desse deslocamento de preferências, dessa diversidade e, ao mesmo tempo, das especificidades alocadas a regiões e países cabe perguntar-se como as relações entre estilos de masculinidade, feminilidade e sexualidade fazem parte desse processo de mutação na geografia do turismo sexual internacional.

Neste texto procuro oferecer elementos para responder essa indagação, explorando como o Nordeste do Brasil se insere na expansão desses circuitos. Meu argumento central é que, embora fatores econômicos estejam intimamente vinculados ao desenvolvimento do turismo sexual, os aspectos políticos e culturais, permeados por gênero, são fundamentais para a compreensão da alteração nesses circuitos mundiais. Desenvolvo esse argumento levando em conta as conceitualizações de estrangeiros à procura de sexo e de “nativas” que com eles se relacionam, no marco de uma modalidade de turismo sexual que tem lugar em Fortaleza, capital do Estado do Ceará, no Nordeste do Brasil. Trata-se de um estilo de turismo sexual (1), denominado por alguns locais “turismo sexual de classe média”, através do qual visitantes de diversos países se relacionam com mulheres originárias de diversos estados do Nordeste do Brasil.

Nas primeiras partes deste texto discuto a maneira como o turismo sexual é definido nas discussões sobre essa problemática e apresento as características do universo pesquisado. Levando em conta as conceitualizações forâneas e nativas sobre essas viagens, reflito depois sobre as interconexões entre gênero, nacionalidade, classe e cor presentes nesse contexto. Finalmente, retomo as questões iniciais, pensando como essas interconexões permeiam a inclusão do Nordeste do Brasil nos circuitos mundiais de turismo sexual.

Conceitualizando o turismo sexual

A partir do início da década de 1990, a intensificação do turismo internacional, vinculada à chegada de vôos diretos, tornou mais visível a prostituição voltada para estrangeiros no Nordeste do Brasil. Nesses anos, chegou-se à conclusão de que essa região tinha sido integrada no circuito mundial de turismo sexual (Piscitelli 1996). Assim, o Brasil começou a ser considerado um dos países da América Latina, Caribe e África que, nas décadas de 80 e 90, se tornaram novos alvos para os turistas sexuais.

Os esforços para compreender o turismo sexual originaram um corpo de conhecimentos que apresenta uma pluralidade de abordagens. Parte desses estudos tem como referência o trabalho pioneiro de Truong (1990), no qual o turismo sexual é vinculado às relações entre homens de países ricos e nativas de nações pobres e à prostituição e considerado resultado de uma série de relações sociais desiguais, incluindo relações entre Norte e Sul, capital e trabalho, produção e reprodução, homens e mulheres. Essa concepção sobre turismo sexual é corrente na bibliografia sobre o tema, na qual o turismo sexual é freqüentemente vinculado a viagens organizadas, destinadas a um público masculino entre 35-50 anos, sempre no sentido “centro-periferia” (Leheny 1995, Richter 1994, Pettman 1997, Chame 1998, Carpazoo 1994, Dias Filho 1998).

No transcurso da década de 1990, diversos estudos foram alargando o campo de discussões, chamando a atenção para a extrema diversidade presente no universo do que é considerado turismo sexual. Essa diversidade se expressa na existência de várias modalidades desse tipo de turismo (Mullings 1999, Hall 1994); em significativas distinções entre turistas, homens (O’Connell Davidson 1996, 2000, Seabruck 1996) e mulheres (du Cros e du Cros 2003, Sanchez Taylor 2000, O’Connell Davidson e Sanchez Taylor 1999, Oppermann 1999, Phillips 1999, Dahles e Bras 1999, Pruitt e LaFont 1995, Meisch 1995), e no amplo leque de relacionamentos estabelecidos entre estrangeiros/as e nativos/as, envolvendo tanto contatos múltiplos, anônimos e imediatamente remunerados, como ligações duradouras e atravessadas por emoções românticas que, embora não excluam o interesse econômico, não incorporam pagamento monetário direto (Cohen 2003, Ryan 2000).

As análises considerando esse leque de diferenças vêm desestabilizando vários supostos generalizantes sobre o turismo sexual. A idéia de que o turismo sexual envolve homens do Primeiro Mundo, geralmente velhos, viajando aos países em desenvolvimento à procura de prazeres sexuais não disponíveis, pelo menos pelo mesmo preço, em seus países torna-se mais complexa através da contraposição com modalidades, em diversos países da África e do Caribe, nas quais as mulheres do Primeiro Mundo à procura de sexo superam os homens. A presença maciça de turistas sexuais viajando, em várias partes do mundo, de maneira isolada e autônoma (Kempadoo 1999) é um elemento a partir do qual se discute o suposto de que o turismo sexual envolve, basicamente, pacotes turísticos organizados.

O ponto mais importante, porém, é que essas pesquisas contestam a adequação da idéia de prostituição, concebida em termos de serviços sexuais remunerados, indiscriminados e emocionalmente neutros, para compreender o conjunto de relações que surgem desses encontros sexuais entre turistas e locais. Assim, a associação linear entre turismo sexual e prostituição vem sendo contestada por aproximações que consideram o turismo sexual como turismo voltado para a procura de sexo, no qual algumas modalidades poderiam ser consideradas parte da prostituição, enquanto outras não poderiam ser nela englobadas (Opperman 1999, Ryan 2000). Compartilhando esta abordagem, neste texto penso nas concepções acionadas no “turismo sexual de classe média”, em Fortaleza, considerando turistas sexuais (internacionais) aqueles estrangeiros viajando a procura de sexo.

A “prostituição chique” da Praia de Iracema

Essas reflexões se baseiam nos resultados de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida em uma abordagem antropológica. Os dados, colhidos durante um trabalho de campo realizado durante 9 meses, entre outubro de 1999 e agosto de 2002, foram obtidos através de observação, entrevistas “itinerantes”, acompanhando o percurso dos/as agentes envolvidos, entrevistas grupais e individuais, em profundidade, e diversos tipos de fontes. Parte importante do trabalho de campo consistiu em acompanhar o trânsito de turistas internacionais e mulheres locais pelos circuitos de circulação vinculados a esse estilo de turismo sexual. São espaços turísticos nos quais convivem visitantes estrangeiros e brasileiros, camadas médias locais, e jovens mulheres de setores mais baixos, algumas das quais realizam “programas” (2) . A informação gerada pela observação foi suplementada por entrevistas com mulheres que mantêm relacionamentos amoroso-sexuais com estrangeiros; com turistas à procura de sexo de diversas nacionalidades e com estrangeiros que, fascinados pela sua experiência como turistas, fixaram residência na cidade. Realizei, também, entrevistas com diversos agentes envolvidos com turismo internacional e/ou prostituição (3) e obtive dados secundários de agências do governo, instituições educacionais e ONGs. Essas fontes possibilitaram situar a pesquisa num marco de informações que relativiza a intensidade do fluxo de turistas internacionais na cidade (4) e o peso absoluto a eles concedido, no passado, na incidência da prostituição infantil em Fortaleza. (5)

Ao falarem em “turismo sexual de classe média” os cearenses aludem a distinções entre modalidades de prostituição voltadas para os estrangeiros. O universo feminino que participa dessa modalidade de turismo sexual está integrado por mulheres que compartilham, entre si, certas características. Moram em setores de camadas médias, camadas médias baixas e, inclusive, pobres, mas não necessariamente miseráveis e têm um grau de escolaridade comparativamente mais elevado que o de mulheres envolvidas em níveis “inferiores” de prostituição.

Tratando cuidadosamente da “aparência”, essas mulheres, várias das quais estão na casa dos 20 anos, exibem corpos esguios. Elas apreciam perfumes importados e usam roupas à moda, ocasionalmente de grifes estrangeiras, e relativamente discretas; concedem cuidados especiais à pele e aos cabelos. Esses cuidados são expressões de uma produção corporal voltada para os critérios de seleção atribuídos aos visitantes internacionais. Mas, eles visam a estabelecer também distâncias em relação às imagens tradicionais da prostituição local, que tendem a vinculá-la com aquela de menor “nível”.

O efeito dessa produção corporal é uma relativa indistinção entre essas garotas e outras, de camadas mais elevadas e desvinculadas da prostituição, que por ali transitam. Essa relativa indefinição integra-se numa série de marcas que dotam as aproximações entre essas garotas e os visitantes internacionais de um caráter particular. Diferentemente da sexualização explícita e do caráter definido presente em diversas modalidades de prostituição, em Fortaleza, os encontros, carregados de sensualidade, entre turistas estrangeiros e essas nativas estão perpassados por indefinições.

Na maior parte dos espaços “misturados” da Praia de Iracema (no sentido em que neles convivem pessoas envolvidas na prostituição com outras que não estão a ela vinculados), as aproximações adquirem as características de um flirt. Aos estrangeiros tende a caber a conquista. Esse estilo de aproximação, remetendo a padrões tradicionais de cortejo, é significativo. A essa dinâmica de aproximação soma-se o fato de algumas garotas só explicitarem sua expectativa de pagamento após terem passado a noite com os estrangeiros (e não antes) e de outras nunca fazê-lo diretamente. Por outra parte, os relacionamentos que extrapolam a duração atribuída a um programa são correntes.

Por outro lado, as práticas de cortejo e namoro desenvolvidas por alguns visitantes internacionais à procura de sexo os diferencia dos “clientes” e, inclusive, dos namorados locais. Narrando histórias nas quais a fidelidade durante a estadia, as lágrimas e a intensidade dos contatos após a partida adquirem o estatuto de medida do grau de amor envolvido, uma garçonete de 25 anos, descreve as aproximações de um namorado estrangeiro:

Todas as noites me esperava, sentava na minha mesa. Mandava rosa para mim no meio da noite. Tão bom!... E aí... você vai se apegando mais...

Nesses circuitos os visitantes estrangeiros percorrem roteiros específicos na busca de mulheres. E, pelo menos parte dessa procura adquire um certo grau de ocasionalidade. Embora esteja direcionada para garotas consideradas “de programa” pelos cearenses, ela integra um leque vasto de nativas. Nesses espaços encontrei jovens que realizam “programas” com estrangeiros à maneira daqueles destinados à clientela local, isto é, com tarifas, durações e, inclusive, práticas sexuais previamente acordadas. Achei, também, garotas subsistindo na base de “programas” com estrangeiros, com os quais mantêm relações muitas vezes duradouras, envolvendo pagamentos cujo valor não é fixo. As palavras de uma mulher de 24 anos aludem simultaneamente à elasticidade desses “programas”, e à fundamental importância da troca monetária nessas relações.

Só gosto de gringo... Have money! Muito simpáticos, românticos, sei lá, é diferente... Quando eu vejo um homem que seja pão duro, é rabiscado na mesma hora... Esses homens vão e voltam... Se não aproveitar, aí tchau... Saí com um português. Ele era bom... Me deu 450 dólares para passar quatro dias com ele, em Jericoacoara. Ainda me deu um banho de loja, no shopping. Esse homem foi incrível... Comprou umas coisas para meus meninos... gastou uns 800 paus... E eu passei esses dias só na maravilha, lá, curtindo praia, comendo do bom e do melhor, andando de bugre... Só mordomia.

Em alguns casos, essas garotas combinam os programas com algum ingresso mais estável enviado desde o exterior, mediante ordens de pagamento internacionais, por namorados fixos, às vezes casados, que as visitam eventualmente.

Nos espaços vinculados a esse estilo de turismo sexual encontrei, também, meninas com empregos fixos e baixos salários, que delimitam diferenças entre elas e as “moças de programa”. Elas aceitam e, ocasionalmente, procuram presentes e contribuições financeiras a médio e longo prazo. Deparei-me, ainda, com jovens que saem exclusivamente com estrangeiros, mas não têm qualquer expectativa com relação a dinheiro ou presentes. Elas aspiram penetrar no mundo acessível aos turistas, compartilhando passeios, restaurantes, hotéis.

Nesses circuitos achei, também, mulheres de camadas médias, com elevado nível de instrução e, inclusive, profissionais liberais, na faixa dos 30, 40 e 50 anos, que se ressentem das características de um mercado matrimonial por elas percebido como extremamente desigual, pela saturação de mulheres e pelo fato de os homens terem amplo acesso a mulheres 20, até 30 anos mais novas. Entrevistei algumas freqüentadoras da Praia de Iracema com essas características. São mulheres desvinculadas da prostituição que procuram relacionar-se exclusivamente com visitantes internacionais.

O romantismo perpassa os relatos de mulheres de diversas camadas sociais. Mas, nas histórias das entrevistadas de camadas inferiores, a idealização dos estrangeiros muitas vezes convive com a esperança de viver fora do Brasil. Entre essas últimas circula uma narrativa que, minimizando os maus tratos e escravidão aos quais são submetidas algumas brasileiras no exterior, sublinha namoros e casamentos bem-sucedidos, com particular destaque para a aquisição de apartamentos, bares ou restaurantes, que expressam uma nítida ascensão social. Os países almejados variam, mas, essas meninas, versadas em questões ligadas às viagens internacionais, freqüentando o café-internet para receber as mensagens dos namorados distantes, e atualizando, através de tradutores, a velha tradição dos analfabetos procurarem escrevinhadores, sonham com um futuro melhor, sobretudo, na Europa.

Nos espaços associados a essa modalidade de turismo sexual há uma heterogeneidade análoga no que se refere aos estrangeiros. Entre eles há homens de diferentes nacionalidades, regiões, idades, profissões, níveis de renda (6), escolaridade, estado civil e graus de conhecimento da cidade. O tempo de permanência desses turistas na cidade e o tipo de hospedagem escolhido são variados. Esses entrevistados descobriram Fortaleza de diversas maneiras. Alguns foram orientados por referências casuais e/ou pelas informações oferecidas nos sites da Internet. A propaganda boca a boca também é um fator importante no recrutamento de novos turistas à procura de sexo. Essa circulação de informação conflui com o incremento de vôos entre cidades estrangeiras e Fortaleza e de pacotes com baixo preço, fato que incide de maneira crucial no aumento dos visitantes internacionais na cidade. Mas, idades, origem nacional e “níveis” de renda e escolaridade não mantêm relações lineares com o estilo de mulheres escolhidas, nem com o tipo de relacionamentos com elas estabelecidas.

As garotas pobres que namoram exclusivamente estrangeiros realizam distinções entre aqueles que circulam nos circuitos vinculados ao “turismo sexual de classe média”. Elas preferem os turistas “novos”, visitando pela primeira vez o Brasil. Os visitantes “habitués” e os residentes transitando e, ocasionalmente, saindo, com meninas que fazem “programa” são os entrevistados que manifestam uma percepção mais nítida do caráter desses relacionamentos. Essa particularidade soma-se a outro aspecto, crucial no estabelecimento das diferenciações por elas realizadas entre os visitantes internacionais. Segundo uma garçonete:

Sabe, tem homens que vêm para cá, só atrás de aventura, entende? Só de trocar de mulher todas as noites. Mas, esses já que arranjei, vêm mais atrás de carinho, mais atrás de atenção...

Os entrevistados invariavelmente afirmam não recorrer a prostitutas em seus países de origem. Entre eles, vários estão longe de pretender estabelecer relacionamentos duradouros com as nativas. Para alguns desses viajantes, o estilo de turismo escolhido faz parte da estratégia para evitar esses relacionamentos nos locais visitados e também nos países de origem. De acordo com um consultor financeiro estadounidense, divorciado:

I don’t want to get back into a relationship… In America, typically, if you go out with a woman, on a first date, you kiss her, after like the third date, you generally are sleeping with her and if you start sleeping with her, she expects you will see her only. And so then she wants to see you all the time and so you have to very selective when you start going out with people… I just avoided it all together. My idea is having fun …

Alguns desses homens procuram serviços sexuais com inúmeras mulheres, tentando controlar os valores pagos. Outros se recusam inteiramente a pagar encontros sexuais. Finalmente, outros, guiados por um certo critério ético, sentem-se mais justos pagando “bem” por sexo. Nos termos do consultor financeiro:

Here you’re getting so much. I mean, in terms of a relationship, and it’s kind of selfish on your part unless you want to give them something back. And you can’t give them what they probably want, a long term relationship, so, you try to give them something. I feel better about paying, than somebody who picks up a girl and use her for a week and take off.

Nesse universo alguns entre os visitantes “atrás de atenção”, são homens dotados de escasso valor no mercado sexual/amoroso/matrimonial de seus respectivos países, que procuram estabelecer relacionamentos duradouros com “nativas”, inclusive com garotas que fazem “programas”. Há outros que, evitando mulheres percebidas como “de programa”, procuram garotas de camadas baixas, utilizando o trabalho como indicador do não envolvimento com a prostituição. Eles escolhem meninas pobres, percebidas como “simples” e “autênticas”, supostamente não maculadas pela participação no mercado do sexo.

Nesse contexto, os argumentos através dos quais essas garotas e os estrangeiros que com elas se relacionam explicam suas escolhas mútuas adquirem importância. Essas formulações possibilitam o acesso aos procedimentos por meio dos quais esses agentes acionam as categorias de diferenciação permeando a escolha de parceiros/as, permitindo vislumbrar os aspectos que atraem os visitantes internacionais para o Nordeste do Brasil e aqueles que tornam esses turistas desejáveis aos olhos das jovens locais.

Gênero, nacionalidade

Os estrangeiros entrevistados coincidem em considerar temperamento cálido e espírito aberto, simpatia, alegria e descontração traços específicos que marcam o caráter brasileiro, distinguindo-o daquele atribuído a outros países. Nessas relações, a apreciação dos atributos marcando o Brasil é aparentemente positiva. No entanto, cada elemento positivo torna-se, também, parte de uma análise negativa: a alegria brasileira adquire conotações de imprevidência e irresponsabilidade, a maleabilidade e paciência atribuídas à população nativa são associadas à passividade e indolência. Ao contrário, os países da Europa e seus habitantes são considerados frios e individualistas. Mas esses países são tingidos, também, por atributos positivamente avaliados que remetem, sobretudo, à idéia de racionalidade, organização legal e planejamento para o futuro, inexistentes no Brasil.

Estou querendo destacar que essas relações entre nacionalidades estão permeadas por ambivalências. E é importante considerar a relevância adquirida pelas ambivalências na perpetuação dos estereótipos. Refiro-me às reflexões de Homi Bhabha (1994). Analisando o discurso colonial, esse autor assinala que os estereótipos são a principal estratégia discursiva para outorgar um caráter fixo ao “outro”. Eles adquirem força, precisamente, através dos jogos de ambivalências que articulam crenças múltiplas, misturadas e divididas numa corrente de significação. Essas ambivalências permeiam a sexualização da qual o Brasil é objeto.

Nesse universo, as distinções entre países e entre nacionalidades são atravessadas por gênero. Elas são enunciadas estabelecendo relações entre masculinidades e entre feminilidades, nativas e forâneas. Do ponto de vista desses entrevistados, os atributos alocados ao Brasil, corporificados no sangue, marcam a masculinidade nativa com um temperamento explosivo e perigoso, em contraposição ao sangue “frio” dos europeus. Nessas visões, os estilos de ser homens nativos, associados a uma certa indolência, à propensão a um consumo excessivo de álcool e à “burrice” se expressa num temperamento belicoso e, sobretudo, na atribuição de uma sexualidade exacerbada, primária e pouco elaborada.

As masculinidades européias, ao contrário, são apresentadas como evidenciando sinais de romantismo e delicadeza. Os estrangeiros entrevistados insistem, também, em destacar a dedicação ao trabalho e a valorização da responsabilidade em relação à família, particularmente, da paternidade, como elementos centrais na constituição das masculinidades positivamente avaliadas. Nesses pontos, essas noções de masculinidade reiteram as presentes em outros contextos (ocidentais) (Vale de Almeida 1995). Mas, é importante não perder de vista que essas formulações se integram em relações entre masculinidades européias e brasileiras, nas quais estas últimas são invariavelmente inferiorizadas.

No que se refere aos estilos de sexualidade, não há, necessariamente, convergências entre esses entrevistados. Mas, eles tendem a convergir nas alusões à propensão a estabelecer relacionamentos igualitários com (todas) as mulheres, oferecendo a elas carinho e a oportunidade de gozar, sublinhando sua capacidade de “amizade” intersexual, orgulhando-se, também, da maneira como encaram as tarefas domésticas, inclusive nos relacionamentos com as “namoradas” das férias. Num jogo no qual nenhum traço de personalidade e/ou temperamento escapa à relação entre nacionalidades, diferentes tipos de turistas sexuais, “atrás de aventura” e “atrás de atenção”, contrapõem umas e outras características ao “machismo”, considerado aspecto distintivo da masculinidade local.

As percepções dos estrangeiros entrevistados mostram uma valorização aparentemente positiva das mulheres locais. Os traços vinculados à feminilidade nativa são delineados por meio do contraste com aqueles associados às mulheres dos respectivos países de origem dos entrevistados. A acessibilidade e “calidez” do temperamento das brasileiras são, assim, contrastados com a arrogância atribuída às alemãs, o “fechamento” das portuguesas e a auto-apreciação exageradamente positiva das inglesas, a frialdade, o espírito calculador e a altivez das italianas.

Na percepção desses estrangeiros as feminilidades das mulheres do Norte estão marcadas por um elevado grau de masculinização. Tratar-se-ia de mulheres independentes que, priorizando o sucesso profissional, a carreira, o dinheiro e, inclusive, consumindo sexo pago e/ou exótico, são percebidas como agindo à maneira de homens. Nas impressões dos entrevistados dos países mais ricos, o temperamento carinhoso, a calidez, simplicidade e submissão das nativas, integram-se numa idéia de feminilidade que, revestida de traços de “autenticidade”, remete a uma submissão considerada desaparecida na Europa: “A mulher aqui ainda é mulher, mais carinhosa”, diz um turista italiano. Nos termos de um residente holandês:

A mulher brasileira... quer dar prazer! . Ela quer fazer boa comida... Quando o homem está contente, ela está contente. Essa é a diferença com as européias, e isso atrai muito os homens.

Mas, as leituras, aparentemente positivas, dessas feminilidades, convivem com a sexualização e a inferiorização das garotas. As maneiras locais de ser mulher são percebidas como marcadas por uma sensualidade singular que se expressa corporalmente. A sensualidade é vinculada a um temperamento percebido como ardente, evidente entre prostitutas e também entre mulheres que, aparentemente, não fazem “programas”, que singulariza as nativas distinguido-as das mulheres disponíveis em outros destinos de turismo sexual. De acordo com o consultor financeiro estadounidense:

Here, a lot of the girls, if you say… well I don’t want to spend money, they say, oh, no money, don’t worry about it…. They just want to have fun. So they like it. For them it is Ok. I was very surprised. It is this physical enjoyment, this passion that the Brazilians have. It doesn’t happen in other countries…

Essa sensualidade é revestida de simplicidade. Ela é também associada à falta de inteligência: “Só pensam em namorar e dançar forró” afirma um residente italiano, aposentado, de 60 anos, dando-me como exemplo a amiga, “muito jovem e muito ciumenta” que mora na casa dele. Desenhando com as mãos acentuadas curvas femininas que balançam de um lado ao outro, adiciona, estabelecendo uma relação causal:

Falta cérebro, não consegue aprender, paguei a escola para ela durante dois anos, mas não sabe nem a tabuada.

E a “fogosidade” é ligada à propensão para modalidades (mais ou menos) abertas de prostituição. Na leitura desses estrangeiros, precisamente, sensualidade, impressionante disposição para o sexo e simplicidade são atributos que dotam de características específicas o mercado de sexo local. Na confluência entre esses atributos, os visitantes à procura de sexo constroem as razões que os levam a incluir Fortaleza em seus roteiros de férias.

Parte importante desses visitantes, particularmente os europeus, escolheu a cidade após ter percorrido conhecidos pontos do circuito internacional de turismo sexual. Na perspectiva criada pela comparação entre esses lugares e Fortaleza, alguns destacam a particularidade que, segundo eles, marca a cidade, sintetizada pela idéia de uma prostituição difusa. A singularidade de Fortaleza estaria situada no encontro entre a ausência de equipamentos vinculados a um maior grau de organização da prostituição e o caráter lúdico que marca os encontros entre estrangeiros e nativas. Na leitura desses turistas, essa confluência é viabilizada pelo temperamento nativo, cuja intensa disposição para o sexo torna dispensável uma organização mais eficiente. E, por sua vez, o clima difuso que perpassa parte substantiva desses encontros cria uma ilusão de “normalidade” que possibilita aos visitantes não necessariamente se perceberem como clientes.

A peculiar atração (erótica) mediando esses encontros transnacionais é perpassada, também, por outras diferenciações. A idade é uma delas. Os entrevistados apreciam o acesso à sensualidade nativa corporificada em mulheres muito jovens. Nos termos de um residente italiano: “No Brasil, não há homem velho. Mulher, sim”. Esses estrangeiros mostram, também, certa percepção das diferenças de classe locais, lidas através da distância afetivo/sexual estabelecida pelas mulheres das camadas sociais mais elevadas em relação a eles. Apenas as mulheres desses grupos sociais parecem, ocasionalmente, escapar do jogo de inferiorização que, intimamente vinculado à localização estrutural dos respectivos países nas relações transnacionais, afeta as nativas das camadas baixas e dos setores menos favorecidos das camadas médias.

Observo que, nesse contexto, a localização se torna fundamental para a compreensão de como operam as diferenciações que confluem na inferiorização dessas brasileiras. Alguns desses estrangeiros estão situados, em seus respectivos países, em camadas sociais análogas às das jovens com as quais se relacionam em Fortaleza. De acordo com uma mulher que faz “programas” na Praia de Iracema:

Uma vez fiquei com um cara, eu nem sabia... um fruteiro, minha filha, vendedor de fruta... Era lindo, era uma postal de homem. Um fruteiro aqui vai ter a educação que aquele homem tinha mulher? É muito diferente... Um homem de sapato bom, a roupa boa, e bonito, lindo, a pele muito boa. E os pedreiros de lá, os pedreiros!

No universo de nativas que se engajam em relacionamentos amoroso/sexuais com visitantes internacionais reitera-se o procedimento de delinear masculinidades e feminilidades contrastando noções associadas às maneiras de ser homem e mulher alocadas aos diferentes países. Estabelecendo relações entre construções de gênero e nacionalidades, entrevistadas de diferentes camadas sociais, vinculadas ou não à prostituição, inferiorizam as masculinidades locais associando os atributos mais valorizados às maneiras de ser homem dos estrangeiros. A percepção das masculinidades nativas está, aliás, imersa numa permanente oposição “dentro”/”fora”, constantemente redefinida. Nesse universo, essa oposição aponta para relações onde as concepções sobre o “local” se definem, ora em relação ao “estrangeiro” de outras nacionalidades, ora em relação aos forasteiros nacionais e, nesses casos, o (rico) Sudeste do Brasil, reiterando em escala nacional uma valorização vinculada à localização, ocupa o privilegiado lugar do “fora”.

Nessas relações, os estilos de masculinidade local, invariavelmente considerados “machistas”, são percebidos como marcados por traços de intensa possessão, agressividade, distanciamento afetivo, falta de respeito e infidelidade. A atribuição desses traços distintivos aos nativos é implementada pelas entrevistadas para explicar a escolha dos homens “de fora”. E, ao contrário, os forasteiros, particularmente os estrangeiros, aparecem corporificando estilos de masculinidade vinculados a uma certa “abertura” e um maior grau de igualitarismo. Essas qualidades, vinculadas a diversas nacionalidades européias, são apresentadas como se integrando em maneiras de ser homem que aparecem marcadas por romantismo, delicadeza e cuidados.

Nessas relações entre masculinidades, as maneiras de ser homem positivamente avaliadas estão necessariamente associadas a um certo padrão social. Nesse sentido, o tipo de emprego integra-se num conjunto mais amplo de indicadores que, combinando país de residência, posses e disposição para gastar o dinheiro, inclusive pagando viagens ao exterior, estão associados aos estilos de masculinidade melhor considerados. Nessas relações, outras diferenciações estão longe de operar de maneira estável. A idade, indiferente, para algumas entrevistadas, é, ao contrário, um aspecto relevante nas preferências de outras, particularmente no caso das mais apreciadas dos estrangeiros.

No marco dessas distinções, os estilos de sexualidade associados às diversas maneiras de ser homem adquirem significados particulares. Numa valorização que mostra relativa autonomia em relação ao “desempenho” sexual, as percepções dessas entrevistadas apontam para relações nas quais os estilos de sexualidade vinculados às masculinidades positivamente avaliadas revelam, sobretudo, cuidado, companheirismo e generosidade. Esses atributos podem estar alocados a uma ou outra nacionalidade. Mas, em relações que tornam evidente a crucial importância da intersecção entre gênero e nacionalidade, nas conceitualizações das garotas pobres que namoram estrangeiros, elas tendem a ser aquelas dos visitantes dos países do Norte.

As relações entre feminilidades estabelecidas pelas entrevistadas reiteram atributos presentes na apreciação dos estrangeiros. Nessas leituras, as feminilidades européias aparecem como marcadas pela autonomia e, de maneira análoga ao “clima” associado aos respectivos países, pela “frieza”. Opondo-se a esses estilos de feminilidade, as maneiras de ser mulher brasileira aparecem marcadas pelas qualidades que os visitantes internacionais lhes atribuem. O temperamento carinhoso faz parte desses atributos, associados, por algumas entrevistadas, à idéia de dependência, baseada na necessidade econômica. As reflexões de uma garçonete, sobre a base de suas experiências, esclarecem esse ponto:

É o tipo da coisa, é você agradar ele... As mulheres dos países deles não são dependentes, tem o dinheiro delas, carro, liberdade, não precisam de um homem para ir a um bar. Brasileira, não, brasileira precisa. Eles gostam disso, e elas, as brasileiras, gostam que eles tomem conta. Delas olhar algo e dizer, que bonito e eles comprarem para elas. Eles gostam dessa dependência e elas gostam do jeito deles.

E as idéias sobre o temperamento nativo são incorporadas na intensa carga de sensualidade atribuída pelas entrevistadas às feminilidades locais. “Somos mais caldas”, afirma uma delas. As entrevistadas reiteram a idéia de que a sensualidade, marca o temperamento das nativas. Ela é percebida por essas garotas como o aspecto que as singulariza e torna-se o elemento central através do qual elas tentam garantir o sucesso e permanência desses namoros, negociando, inclusive seu posicionamento nesses relacionamentos.

Nas inter-relações entre categorias de diferenciação permeando as práticas envolvidas no “turismo sexual de classe média”, gênero e nacionalidade tornam-se, assim, indissociáveis. E essas imbricações expressam-se por meio da “cor” corporificada por estrangeiros e nativas: as relações estabelecidas através da “cor” completam os procedimentos de valorização dos estilos de masculinidade atribuídos a certas nacionalidades e de sexualização das nativas.

“Cor”, estetização, racialização

Pode parecer paradoxal que me refira à cor, aludindo a visitantes (e residentes) de países do Norte. E, mais ainda, que numa pesquisa centrada em Fortaleza, aluda à noção de “racialização”. Isto porque, quando se fala em “cor”, nem sempre a “brancura” é levada em conta. Por outro lado, entre as capitais do Nordeste vinculadas ao turismo sexual internacional no Brasil, essa cidade está situada no estado que, segundo o Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, apresenta a menor taxa de população negra. (7) Explicar a utilização desse termo exige pensar tanto nas noções de “brancura” e “racialização” como na maneira que a “cor” opera no marco das relações transnacionais em Fortaleza.

Falo em brancura, referindo-me a algo que vai além da cor da pele, seguindo o pensamento de Bell Hooks (1990), autora que contesta abertamente a vinculação exclusiva da raça ao Outro não branco. Trata-se de considerar a brancura como conceito subjacente ao racismo, à colonização e ao imperialismo cultural.

No que se refere à “racialização”, essa noção, utilizada no início da década de 1960 por Fanon (1979), tem sido recriada no marco das discussões contemporâneas sobre os contatos transnacionais e multiculturais associados à globalização. Entre essas perspectivas, contam-se as abordagens feministas que, interessadas em compreender a imbricação entre gênero e outras categorias de diferenciação, conferem um lugar destacado à "raça”. E se o conceito de “raça” tem um estatuto ambíguo nas correntes antropológicas (Fry 95-96, Cowlishaw 2000) nas abordagens feministas que o adotam, nem sempre o conteúdo dessa categoria resulta claramente delineado (Anthias e Yuval Davis 1993) nem há, sequer, acordo, sobre o estatuto conceitual dessa categoria (Moore 1994, Haraway 1991, Stolcke 1993). Entre essas linhas de pensamento há, entretanto, convergências no que se refere à pensar em racialização para aludir ao modo complexo de operação das desigualdades através do qual se excluem grupos corporalmente marcados. Mas, do meu ponto de vista, cor e racialização também estão presentes na superioridade concedida a certos grupos nesses processos de exclusão.

Quando digo que a “cor”, indissociavelmente ligada à nacionalidade, é vinculada às masculinidades mais valorizadas, refiro-me à invariável marca da “brancura” na corporificação dessas maneiras de ser homem. Em procedimentos nos quais o temperamento marca o corpo, que é apreciado através de critérios estéticos, os traços distintivos das masculinidades mais apreciadas são sempre associadas a uma beleza contrastante com a feiúra atribuída aos locais. E penso em critérios estéticos como julgamentos de beleza e gosto (Overing 1996), indissociáveis de um processo de educação dos sentidos no qual as qualidades são incorporadas em sistemas de significado através dos quais se avaliam as propriedades das coisas (Morphy 1996). Nas palavras das entrevistadas:

Os homens aqui, a maioria, são mais baixos, a cabeça, assim, o formato da cabeça é mais arredondado, barrigudos, relaxados...

O homem [pobre] no Ceará é feio que dói. Feio, cabeça grande, achatada, tem um [aspecto] cinzento porque o sol é muito intenso, a ignorância é muito grande.

A estetização envolvendo os homens “de fora” não obedece a padrões corporais fixados com precisão. A beleza alocada aos estrangeiros sintetiza atributos corporificados por homens jovens ou não tão jovens, carecas ou com cabelo. Essa beleza, exprimindo critérios implementados na hierarquização das masculinidades, está associada à brancura, que se expressa em traços fenotípicos: na cor da pele, do cabelo, dos olhos. Mas, essa estetização, vinculada aos europeus e remetendo à localização, envolve aspectos que vão além desses traços.

De maneira análoga, a leitura das feminilidades nativas realizada por esses estrangeiros é marcada pela “cor”. Uma cor, aliás, “morena”, contraposta à brancura vinculada aos/às habitantes da Europa, sintetiza a imbricação de diferenciações corporificada nas mulheres locais. Na visão desses visitantes, incluindo alguns latino-americanos, a cor morena é intimamente ligada ao Brasil e é associada à “melhor mulher”, a mais “fogosa”. Nas palavras de um argentino à procura de sexo:

Las morenitas son más fogosas. Quieren más veces, tienen otra movilidad en la cama, se prestan, por ahí, para otras posiciones, hablando mal y pronto, el culo. La mujer argentina, no lo encara de esa manera.

Ao falarem nas morenas, os estrangeiros utilizam a cor, muitas vezes, em termos descritivos: elas têm uma pele que não é branca, nem negra. Nesses termos, nos quais ser morena remete a uma determinada tonalidade, ser queimada pelo sol não basta. Diferentemente do que parece acontecer em outros contextos de turismo sexual no Brasil, em Salvador e no Recife, nos quais os turistas estrangeiros procuram morenas e negras (Carpazoo 1994, Dias Filho 1998), em Fortaleza, as “negras/negras” são rejeitadas por estrangeiros de diversas nacionalidades. Nas palavras de um turista português à procura de sexo,

Gosto das brasileiras, mas das brasileiras morenas, até das mulatas, das negras nunca, sou um pouco racista.

Kempadoo (2000) chama a atenção para as maneiras como o exotismo está presente nos processos contemporâneos que, ligados a movimentos econômicos e culturais globalizantes, perpassam procedimentos de dominação e exploração. Segundo a autora, essa forma diferenciada de racismo, alimentando a ilusão de admiração e atração pelo Outro, não deixa de inferiorizar a Alteridade. As percepções dos estrangeiros à procura de sexo, em Fortaleza, coincidem em subordinar, através do consumo, a sexualidade nacional. O exótico, delineado na intersecção entre “cor” e sexualidade participa nesse jogo de subordinação. Mas esses estrangeiros estabelecem através da cor, limites nos espaços de exotismo nos quais estão dispostos a transitar.

Entre esses entrevistados a cor é utilizada, também, em termos categóricos, isto é, em termos que, mais do que descrever, possuindo autonomia em relação aos sinais corporais, remetem a uma classificação (Kofes 1976). Nesses termos, as nativas, para além de tonalidades específicas e numa classificação que, atravessando diferentes classes sociais, sexualiza mulheres vinculadas ou não à prostituição, são consideradas “morenas”, corporificando a intensa carga de sensualidade associada a essa cor. E as ambivalências atravessando a apreciação dessa cor mantêm relações com os procedimentos de estetização que, associados às feminilidades, situam numa posição relativamente inferior a “beleza” atribuída às brasileiras. Este procedimento é recorrente entre entrevistados de diversas. Visitantes italianos, encantados com a sensualidade das cearenses, expressam abertamente a superioridade de suas conterrâneas. Um turista dessa nacionalidade me explica:

Le italiane sono piú bele, má, non para mim. Gosto delas. É elas que non gostam de mim...

Entrevistados argentinos, apesar de localizados, do mesmo modo que o Brasil, no Sul, manifestam percepções análogas:

Son más gustosas las brasileras. Yo creo que si la mujer argentina fuera como la brasilera sería la mejor mujer del mundo. Porque las argentinas son más lindas...

A estetização, sintetizando as valorizações permeando esse universo, espelha as relações desiguais nele presentes. A beleza associada à brancura e intimamente vinculada à localização marca os estilos de masculinidade mais valorizados que se corporificam em estrangeiros das nacionalidades mais apreciadas. E, ao contrário, a estetização expressa o lugar subordinado atribuído às brasileiras.

Nesse contexto, a sexualização/racialização das nativas não é operacionalizada exclusivamente pelos estrangeiros. Ela é implementada, também, pelos locais. Entretanto, enquanto na perspectiva dos visitantes internacionais esse procedimento, perpassado por ambivalências, marca todas as brasileiras, na perspectiva dos locais, ele afeta as nativas consideradas mais escuras e àquelas de todas as tonalidades que, acompanhando estrangeiros, são automaticamente percebidas como prostitutas.

Conclusão

Nesse universo, as concepções e práticas associadas à sexualidade adquirem sentido no marco de hierarquizações estreitamente vinculadas à localização estrutural das nacionalidades em jogo. A análise realizada mostra que, nesse contexto, a crucial importância da localização relativiza a relevância da classe. E, nesse marco, gênero e raça “agem” como operadores metafóricos do poder econômico e cultural inerente a essas relações transnacionais. Essas duas categorias têm parte ativa nas conceitualizações através das quais são inferiorizadas/os as/os nativas/os e privilegiados os estrangeiros. Essas concepções se expressam através de construções de gênero ou, alternativamente, por meio daquelas vinculadas à “cor”. Em outras palavras, conceitualizações criadas na intersecção entre gênero e nacionalidade ou entre “cor” e nacionalidade são alternativamente implementadas na sexualização e desvalorização das nativas e na apreciação positiva dos visitantes internacionais.

Como esse jogo de imbricações se relaciona com a (recente) inserção do Brasil no circuito mundial de turismo sexual e com o crescente privilégio concedido por viajantes à procura de sexo a essa região? De acordo com estudos sobre turismo sexual, nas décadas de 1950 e 1960 as mulheres no Sudeste da Ásia e na Ásia oriental representaram o ideal de mercadoria erótica pela promiscuidade e passividade (Mullings 1999). Essas regiões teriam chegado a ponto de saturação na medida em que a impressionante afluência de viajantes tornou essas paisagens sexuais menos autênticas, menos reais e, portanto, menos desejáveis. Levando em conta essas reflexões, é possível afirmar que, na demanda por experiências de viagem com um “valor” mais elevado no mercado internacional do sexo, o Nordeste do Brasil surge como novo destino marcado por uma singular combinação entre uma suposta autenticidade, a atribuição de uma imensa disposição para o sexo sintetizada na cor atribuída às nativas e uma submissão, distante da passividade associada às asiáticas, percebida como alegre e “ativa”.

No que se refere ao privilégio concedido pelas mulheres nativas que se engajam nestes relacionamentos aos estrangeiros, é importante observar que as concepções acionadas no universo contemplado, remetendo à supremacia masculina e branca, devem ser vinculadas à maneira como os padrões de gênero locais, imbricando-se com barreiras de classe e raciais, incidem em suas oportunidades laborais e de obtenção de renda e no posicionamento nos relacionamentos com os homens “da terra”. As garotas realizam negociações com esses estrangeiros no marco de relacionamentos que, no plano “global”, são extremamente desiguais. No entanto, vale observar não apenas que o poder flutua no âmbito das relações micro-sociais, mas também que alguns aspectos desses relacionamentos mostram as conseqüências positivas que eles podem ter no plano local. Eles permitem a algumas garotas ampliar esferas de decisão e influência, em termos de uma realidade (local) na qual gênero e classe se entrelaçam, tecendo as redes de desigualdade que as afetam.

Nas experiências das jovens de camadas baixas que “namoram” estrangeiros, a imersão nos relacionamentos transnacionais resulta num alargamento dos seus mundos, percebido como transposição de fronteiras. Tendo como referência as trajetórias dessas jovens, esse alargamento não pode ser desvinculado da ampliação de suas esferas de poder. E gênero atravessa esse processo, que está intimamente vinculado à ampliação dos repertórios de feminilidade acessíveis às garotas de camadas baixas e médias baixas. À docilidade, “simplicidade” e dependência a elas conferidas contrapõem-se a iniciativa, autonomia e racionalidade que, em termos locais, se integram em (novos) estilos de ser mulher.

BIBLIOGRAFIA
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NOTES

1 - A cidade, considerada pólo industrial e turístico, é uma das que mais crescem no Nordeste e é, também, uma das regiões metropolitanas mais pobres do país. O turismo, cujo crescimento se intensificou aceleradamente a partir da década de 1980, é considerado responsável pela elevação do PIB em aproximadamente 5%, e percebido como a fonte de empregos que mais cresce no Ceará. (Governo do Estado do Ceará. Secretaria de Turismo, s/d, Coriolano, 1998: 88). [tornar]

2 - O termo “garotas de programa”, utilizado, segundo Gaspar (1985), para designar mulheres de conduta sexual estigmatizada e, também, prostitutas é usado na cidade para referir-se a mulheres e adolescentes de diferentes camadas sociais em situação de prostituição. [tornar]

3 - Este texto foi elaborado sobre a base de informações proporcionadas por 24 estrangeiros, 25 mulheres que “namoram” estrangeiros e 12 agentes vinculados ao turismo internacional e/ou a prostituição, na cidade. A pesquisa inclui também entrevistas com 7 homens locais que namoram estrangeiras e 6 estrangeiras que mantêm relacionamentos sexuais/amorosos com homens nativos. [tornar]

4 - Em 2001, Fortaleza recebeu 1.458.178 visitantes brasileiros e apenas 172.894 estrangeiros. Governo do Estado do Ceará, Ceará, Terra da Luz, “Indicadores Turísticos”, outubro de 2002. [tornar]

5 - Dados de pesquisas encomendadas pelo Pacto de Combate ao Abuso e Exploração sexual de Crianças e Adolescentes, em 1998 e 1999, indicam que, nas áreas contempladas, incluindo aquelas freqüentadas pelos turistas, a prostituição infanto-juvenil envolve basicamente adolescentes e apontam para o fato de que, embora os turistas representem um percentual importante da clientela, os turistas brasileiros (16,7%) ocupam um lugar próximo ao dos visitantes estrangeiros (18, 8%) e, no cômputo total, a soma de ambos é inferior a 50% do total dos clientes, que são predominantemente locais (Câmara Municipal de Fortaleza, 1999). [tornar]

6 - Entre os turistas que entrevistei, os salários e/ou retiradas mensais variam entre U$1000 (um argentino) e US$12500 (um estadounidense). [tornar]

7 - Em 2000, segundo o Censo do IBGE, essa taxa era de 3,32%, enquanto Pernambuco apresentava 4,94% e Salvador 13,1%. É importante destacar que, de acordo com os dados apresentados por esse censo, a população “parda” nos três estados apresenta cifras próximas: Ceará conta com 59,12%, Pernambuco com 53,31% e Bahia com 61,93%. Vale observar que a cor é auto-declarada. [tornar]

 

 
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