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Trabalho apresentado no

Seminário sobre Pobreza, Banco Mundial (Brasília) 20/09/2001

Combatendo a desigualdade

O relatório do Banco Mundial de 2002 focaliza um tema que é o dia-a-dia do trabalho dos sociólogos: as instituições. Dentre elas, as normas, a justiça, o sistema educacional, as instituições políticas e várias outras.

Na bibliografia citada, porém, os trabalhos sociológicos que tratam dessa temática são raros. É claro que ninguém tem o monopólio dos temas sociais. Mas já faz algum tempo que, para temas multifacetados, se recomenda o trabalho interdisciplinar.

Neste Painel vejo com prazer a presença de colegas que trabalham em várias disciplinas para debater a questão da desigualdade. Dentro da sociologia, o estudo desse tema cai no capítulo da Estratificação Social.

Nesse capítulo procuramos, em primeiro lugar, mapear e entender a estrutura social procurando responder as seguintes perguntas: (1) qual é o formato da estrutura social em determinada sociedade? (2) nela predomina um sistema de castas, estamentos ou classes sociais? (3) qual é a distância entre as camadas sociais? (4) quais são os fatores que determinam a inserção das pessoas nesta ou naquela camada?

Em segundo lugar, procuramos entender a dinâmica da estrutura social, indagando: (1) como se comporta a estrutura social ao longo do tempo? (2) qual é a rigidez ou fluidez da estrutura social? (3) a mobilidade social é grande ou pequena? (4) as camadas médias aumentam ou diminuem? (5) as distâncias entre as camadas se ampliam ou se reduzem? (6) qual é o impacto da mobilidade social na desigualdade social? (7) quais os fatores que determinam a mobilidade social? (8) como se combinam os determinantes sócio-econômicos (crescimento econômico, diferenciação setorial, emprego, etc.) com os determinantes individuais (herança social, educação, cor, gênero, etc.).

Os estudos sociológicos confirmam que o Brasil é um país muito desigual e que possui uma estrutura social baseada em classes sociais hierarquizadas. Há muita gente na base da pirâmide e pouca gente no topo.

Até aí não há novidade para os economistas que, através do coeficiente de Gini e outros indicadores, fotografam a estrutura de classes de renda do Brasil como uma das mais desiguais do mundo.

Mas, no campo da sociologia, temos curiosidade por outras perguntas. Dentre elas têm destaque as seguintes: (1) Os que nascem nas classes sociais mais baixas morrem nessas classes? (2) Ou há quem escape da situação de origem? (3) Qual é essa proporção? (4) O que determina a sua trajetória de saída?

A trajetória social dos grupos sociais é estudada em dois níveis. No primeiro, estuda-se o que acontece com os indivíduos ao longo de sua própria carreira - é a mobilidade intrageracional. No segundo, estuda-se o que acontece entre as gerações, ou seja, os indivíduos comparados com seus pais, avós e bisavós - é a mobilidade inter-geracional.

Mobilidade Intrageracional

Para o Brasil, tais estudos indicam haver um frenético movimento de entra e sai em todos os estratos sociais, inclusive nos estratos mais baixos - que incluem a pobreza rural e urbana. Há pessoas que permanecem na situação em que nascem ou no ponto em que iniciam sua carreira, e outras que sobem na escala social, passando para situações melhores.

No caso da pobreza rural (lavradores, pescadores, catadores e outros trabalhadores de baixa ou nenhuma qualificação e reduzida renda), 59% dos chefes de família do Brasil, nascem e ficam nessa situação e 41% saem dela ao longo da vida, - uma proporção nada desprezível (José Pastore e Nelson do Valle e Silva, Mobilidade Social no Brasil, Makron Books, São Paulo, 2000).

No caso da pobreza urbana (trabalhadores braçais, vigias, serventes, etc., com pouca educação e ínfima renda), 53% ficam no ponto de origem e 42% sobem na escala social (5% descem para a pobreza rural).

Mobilidade Intergeracional

O que dizer da movimentação que ocorre ao longo de uma ou duas gerações? O que acontece com os indivíduos em relação aos seus pais, por exemplo?

No Brasil, os que nascem e ficam na pobreza rural são apenas 39%. Para esse estrato social, 61% dos estão em condições melhores do que a de seus pais. No que tange à pobreza urbana, 32% ficam na posição dos pais e 63% sobem (5% descem para a pobreza rural).

Mobilidade e Desigualdade

Nas outras classes sociais, a mobilidade segue o mesmo padrão, embora o volume dos que sobem vai diminuindo na medida em que se aproximam do topo da pirâmide. Mas, mesmo aqui, o Brasil apresenta grande dinamismo. Cerca de 82% dos que compõem a classe social mais alta (magistrados, grandes empresários, altos executivos, profissionais liberais, etc.) são filhos de pais que pertenceram a classes sociais bem mais baixas. Em outras palavras, a idéia de que a elite brasileira de reproduz é um mito. Apenas 18% caem nesse caso.

Se a mobilidade social é intensa, por que há tantos pobres e tanta desigualdade no Brasil? Isso é devido, em grande parte, à combinação de dois fatores. De um lado, a fertilidade das famílias pobres mantém-se elevada, enquanto que a mortalidade decresce a cada dia. Nessas famílias, nasce muita gente pobre, o que mantém grande o número de pobres. Elas são uma verdadeira usina de pobres.

De outro, a grande maioria das pessoas de baixa qualificação e educação precária começa sua trajetória de trabalho pelas ocupações mais simples, e que integram a base da pirâmide social por longos períodos da vida. Há uma reposição do estoque de pobres no meio da pobreza para quem começa a trabalhar.

Por isso, para cada fotografia que se tira, encontra-se uma grande base na pirâmide social, onde estão os pobres - alguns saindo e muitos entrando.

Quando se passa para a análise dinâmica, verifica-se que a desigualdade social decorre do fato de que a grande maioria dos brasileiros que sobe na escala social percorre pequenas distâncias e a minoria percorre grandes distâncias. Isso provoca um estiramento da pirâmide social, do que resulta a desigualdade.

Se há pessoas que saíram das classes mais baixas, o que as fez sair? No passado, muitos brasileiros ascenderam socialmente, com pouca educação. Eles preencheram as oportunidades de trabalho de qualidade superior que surgiram na industrialização (décadas de 50 e 60) e na expansão do setor público, comércio, empresas estatais e atividades financeiras (décadas de 60 e 70). Naquele tempo, para uma pessoa subir na pirâmide social não precisava ninguém descer. Era a mobilidade estrutural.

Nas décadas mais recentes, porém, está crescendo a mobilidade circular na qual, dado um determinado número de vagas, para uns subirem, outros precisam descer, se aposentar ou morrer. Essa deverá ser a mobilidade predominante no Brasil do futuro. A boa educação passou a ser uma ferramenta essencial para competir e ter êxito num mercado mais exigente.

Por isso, além das políticas compensatórias e da atenuação dos grandes riscos - que ajudam no curto prazo - a redução da desigualdade e a formação de uma estrutura social com uma classe média maior vai depender de investimentos bem feitos na educação das crianças de hoje e da qualidade dos postos de trabalho de amanhã. É isso que permitirá aos jovens escalarem a estrutura social.

Mas a educação, infelizmente, é de efeito demorado, em especial, num país que acumulou um enorme atraso nessa área. Quando se leva em conta os diferentes grupos de idade e a dinâmica demográfica do Brasil (o peso relativo dos mais idosos vai pesar mais no futuro do que agora), a população brasileira terá apenas 1,74 anos de escola a mais do que tem hoje só no ano 2013. Ademais, o impacto desse incremento como redutor da desigualdade social será muito pequeno (Carlos E. Velez e outros, "Reducing schooling inequality in Brazil, Brasília: 2001).

Nos estudos sobre mobilidade social, observamos o mesmo fenômeno. Ao analisar a importância da educação na ascensão social dos brasileiros verificamos que a educação é um fator de importância crescente e, ao mesmo tempo, dos mais demorados. Os avanços educacionais foram muito pequenos ao longo do século XX.

Em uma amostra de âmbito nacional cobrindo homens, chefes de família, que tinham entre 25 e 64 anos em 1996 (redesenhada para a análise aqui apresentada), verificamos que a lentidão foi a marca dos resultados. Para as pessoas nascidas na década de 30 - pasmem - a escolaridade média era de apenas 3 anos. Para os nascidos na década de 40, não chegava a 4. Os que nasceram na década de 50, chegaram a 5 anos de escola. E daí para frente foi subindo lentamente até chegar a 5,6 anos para quem nasceu na década de 70 (José Pastore e Nelson do Valle Silva, Mobilidade Social no Brasil, São Paulo: Editora Makron, 2000).

Com base nesse padrão, os homens que nasceram em 1998, terão 9 anos de escola somente no ano 2020. Isso significa que uma grande parte dos brasileiros mal completará o primeiro grau - o que, certamente, é muito pouco quando se sabe que a força de trabalho dos dias de hoje na Coréia do Sul, têm 10 anos de escola; a do Japão, 11 anos; a dos Estados Unidos e maior parte dos países da Europa, 12 anos - e todos com educação de boa qualidade. Hoje, esses países estão empenhados em garantir um mínimo de 18 anos de escola para a sua força de trabalho até o ano 2010.

O esforço recente que conseguiu colocar 96% das crianças de 7-14 ano nas escolas de primeiro grau é animador. Isso pode acelerar a escolarização. Mas, o grande desafio, daqui para frente, é o de manter essas crianças nas escolas e dar a elas uma educação de boa qualidade.

Colocar um aluno na sala de aula é relativamente fácil; faze-lo ouvir o que o professor ensina, também é fácil; promovê-lo automaticamente, mais fácil ainda. Mas capacitá-lo com os conhecimentos e condutas apropriadas para um mercado e trabalho crescentemente exigente, é uma outra história.

Quando se examina o papel da educação, o que realmente pesa para melhorar a distribuição de renda e reduzir a desigualdade social é aquilo que as pessoas aprenderam e não o que lhes foi ensinado e muito menos o número de anos que passaram na escola, especialmente quando se pratica o sistema de progressão automática.

Precisamos dar um passo a frente em nossas pesquisas. Alguns estudos procuraram avaliar a qualidade do ensino ao estudar a escolarização dos professores, a carga horária e a infra-estrutura escolar. Proponho que, daqui para frente, venhamos a estudar a qualidade da aprendizagem.

As avaliações dos alunos que vem sendo promovida pelo Ministério da Educação constituem um bom começo. Vale a pena aprofundar tais estudos, repetindo, o que faz diferença na distribuição de renda não é o ensino mas sim a aprendizagem. Esta é que precisa ser acelerada para se atacar a desigualdade.